Gil Ramos de Carvalho Neto1
Elisabete Maniglia2
3 de julho de 2024
Este trabalho foi inicialmente apresentado no 27° Congresso Internacional de Ciência Política (IPSA), realizado em Buenos Aires-ARG, e faz parte do doutorado que está sendo realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Franca. Seu objetivo é investigar se as principais medidas de interesse agroalimentar e fundiário adotadas de prontidão pelo terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contribuem para o retorno da institucionalidade democrática do Brasil.
O Brasil quase sempre teve problemas com a fome e com as questões fundiárias. De Vargas aos anos 1990, os dois temas pouco avançaram. Embora o cenário político-jurídico da década de 1990 fosse favorável, o ciclo econômico neoliberal reduziu o cumprimento dos direitos sociais brasileiros. Apenas nos anos 2000 o cenário melhoraria, iniciando um ciclo político entre 2003-2013, com retrocessos entre 2013 e 2022 e o possível ponto de ruptura atual (2023 em diante).
A eleição de Lula em 2003 para a presidência do Brasil marcou uma guinada inédita no tratamento estatal da questão da fome, com o Projeto Fome Zero e diversas medidas tomadas, como a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA); a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA); a utilização de estruturas já existentes e o incremento de recursos para tais fins; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); a Lei nº 11.346/2006 – Lei de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN); e outras políticas públicas fundiárias e agroalimentares.
Com ampla aprovação em 2010, alguns entenderam ser justa uma chance de Lula concorrer a um terceiro mandato consecutivo. Houve a Proposta de Emenda à Constituição 373/2009 do deputado federal Jackson Barreto (PMDB-SE), mas Lula se declarou contrário à iniciativa e ela não vingou. Seu relator, deputado federal José Genoino (PT-SP) emitiu relatório desfavorável e o colegiado votou com ele (AGÊNCIA CÂMARA NOTÍCIAS, 2009). Lula indicou Dilma Rousseff (PT) como candidata à Presidência, e ela venceu a eleição.
Dilma, em seu mandato, buscou continuar as ideias do governo Lula, inclusive nos temas ora em estudo. No âmbito fundiário, pouco avançou em pautas como a da reforma agrária, ainda que tenha tentado manter a reorganização, a reestruturação e organização dos assentamentos já existentes. No âmbito agroalimentar, a presidente foi responsável pela regulamentação do PAA.
Contudo, os protestos globais (2011-2013), os megaeventos esportivos de 2013-2014 e as rusgas com os movimentos sociais e com o Congresso pela falta de diálogo e de análise da eficiência de políticas públicas levaram à contestação de toda a classe política. A questão da corrupção e o julgamento do “Mensalão” colocaram a imprensa contra o governo. E a transformação da pirâmide social sob Lula, com mais acesso à educação superior e ao consumo, incomodou a representação simbólica da hierarquia social (Alonso, 2017).
No mesmo período, o Brasil saiu do “Mapa da Fome” das Nações Unidas, meta que cumpriu com os Objetivos do Milênio e tornou o país um exemplo. O conjunto da obra permitiu a reeleição de Dilma em 2014, por uma margem bem estreita, que levou a oposição a um pedido de cassação de seu registro de candidatura junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), alegando abuso de poder econômico e uso da máquina administrativa na campanha eleitoral – os quais não foram comprovados.
Escândalos de corrupção e a operação judicial midiática denominada Lava-Jato, iniciada em março de 2014, aliados às manifestações de rua, foram minando o ambiente político e levaram, em 2016, ao impeachment da presidente Dilma. A partir daí, e até 2018, assumiu seu vice, Michel Temer (PMDB-SP).
Pelo projeto de matriz econômica liberal-excludente comum, Michel Temer editou a medidas provisórias (MP) 726, enxugando a estrutura estatal, e 759, mudando a política agrária do país. Isso levou à paralisia de várias ações ministeriais e à suspensão de pagamentos e repasses orçamentários e financeiros já garantidos no Plano Safra da Agricultura Familiar para 2016-2017. O PAA teve redução significativa de recursos, além de outros reveses. A eles somou-se a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que limitou os gastos públicos por 20 anos, o que explica o hiato de políticas públicas agrárias nos anos de 2016 e 2017 e de SAN desde 2013, com o retorno do país ao Mapa da Fome em 2018.
A ascensão global da extrema-direita e a hegemonia neoliberal causaram prejuízos aos direitos sociais, precarização do trabalho e diminuição da soberania popular, com esvaziamento da democracia em prol da pós-democracia (CASTELLS, 2018; PRZEWORSKI, 2020), levando as propagandas eleitorais a terem fortes técnicas de marketing. Mas os escândalos de corrupção e o aumento das desigualdades levaram à adesão a propostas antidemocráticas, dando a vitória nas eleições de 2018 ao candidato autointitulado “outsider da política” Jair Bolsonaro (então PSL, mas permaneceu sem partido por parte de sua gestão) .
Bolsonaro, já no início do mandato (2019), editou a MP 870 para promover a reorganização dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios em um cenário de críticas à corrupção (inerente ao setor político, segundo a Operação Lava-Jato) e ao tamanho do Estado, atribuindo à Presidência apenas 16 ministérios e 6 pastas com status ministerial (AGÊNCIA SENADO, 2019). Isso tirou a especialidade da atuação de certas áreas.
Ainda, a MP 870 transferiu para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) atribuições sobre terras indígenas e quilombolas, em detrimento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e a gestão do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) em detrimento do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Algumas dessas disposições vieram a ser alvo de ações judiciais.
Uma política pública relacionada ao tema no governo Bolsonaro foi o Programa Alimenta Brasil, criado pela MP 1061/2021 em substituição ao PAA, cuja execução foi muito aquém da necessária. Além disso, o governo foi conivente com as invasões aos territórios indígenas, levando à judicialização da questão pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) junto ao STF para proteção das terras indígenas sob invasão – acolhida parcialmente por unanimidade.
Pior foi o enfraquecimento e a politização de instituições como a FUNAI e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Nem mesmo as decisões do STF foram cumpridas. O Tribunal mencionou haver indícios de que o governo Bolsonaro prestou informações falsas à Justiça quanto à assistência e proteção aos Yanomami, abrindo apuração do caso (CONECTAS, 2023).
Nos âmbitos agroalimentar e fundiário, o governo Bolsonaro elevou a fome, abandonou demandas dos negros, indígenas e quilombolas e ainda omitiu essa situação para os entes internacionais. As informações prestadas à ONU quanto aos direitos humanos no país em 2022 foram parciais e esconderam a realidade brasileira, revelada em documentos como o 2º Inquérito sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil (REDE PENSSAN, 2022).
Em paralelo, o então presidente promoveu uma “sub-repção” autoritária, ou seja, uma ação antidemocrática incremental se valendo das próprias leis, sem promover uma ruptura formal com o Estado de Direito. Para isso, promoveu o aparelhamento das instituições contra a democracia (Przeworski, 2020, p. 211), que poderia ser evitado por um comportamento de reação dos eleitores às iniciativas antidemocráticas, mas que, pela insatisfação ou indiferença, fortaleceu o solapamento sub-reptício (Singer; Araujo; Brito, 2021).
Ainda assim, o esforço eleitoral de Bolsonaro para se reeleger e continuar o projeto neoliberal-autoritário foi intenso. Todavia, a mudança de conjuntura política a partir das denúncias de ilegalidades na Operação Lava-Jato e a anulação das condenações judiciais de Lula permitiram a este se candidatar e ser eleito pela terceira vez.
A eleição de Lula para a Presidência nas eleições de 2022 tem sido considerada como uma frenagem no processo de autocratização no Brasil (V-DEM INSTITUTE, 2023). Ainda assim, apenas com uma avaliação constante será possível confirmar essa posição, pois o processo eleitoral foi muito acirrado.
O governo Lula (2023-) e a reorganização política do Executivo brasileiro nos âmbitos fundiário e agroalimentar
Lula buscou de imediato resgatar medidas fundamentais de seus governos anteriores negligenciadas por Bolsonaro. Editou a Medida Provisória 1.154/2023 para estabelecer a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios, passando a contar com 31 ministérios e 6 órgãos com status de ministérios; além disso, recriou o CONSEA.
O país, contudo, continuou apresentando sinais de apoio antidemocrático por parcela da população. No dia 08 de janeiro de 2023, uma multidão invadiu o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o STF, caracterizando um ataque aberto e violento às instituições democráticas, com as apurações ainda em andamento.
No segundo mês, o governo editou decretos que alteraram disposições do CONSEA e reinstituíram a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) – Decretos 11.421/2023 e 11.422/2023, de forma a traduzir a diversidade do povo brasileiro na representação do CONSEA e buscar adequar as políticas de SAN às desigualdades no país.
Contudo, a MP 1.154/2023 dependeria do Congresso Nacional para sua confirmação, sendo este mais conservador do que os seus antecessores. Além disso, Lula criticara o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) no período eleitoral pela prática do “orçamento secreto”3 – declarado inconstitucional pelo STF no julgamento das ADPFs 850, 851, 854 e 1014.
As referidas ADPFs não foram propostas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e o partido também apoiou o deputado Arthur Lira em sua reeleição para a presidência da Câmara, mas este manteve, ainda assim, uma postura pendular. Até o rito de votação da MP 1154 foi debatido. E Lira crê que o julgamento da inconstitucionalidade das emendas de relator nos moldes de 2021/2022 teria tido influência do presidente Lula e de seu desafeto, senador Renan Calheiros (MDB – AL) (Loyola, 2022). Dessa forma, segue o jogo duplo de sua parte.
Uma grande demonstração disso foi o final da tramitação da MP 1154. As negociações políticas para sua votação acabaram promovendo modificações no texto original. Os 37 ministérios foram mantidos, mas a Lei nº 14.600/2023 alterou atribuições ministeriais de pastas ligadas ao meio ambiente, aos direitos indígenas e à agricultura familiar (AGÊNCIA SENADO, 2023).
Quanto à política fundiária, Lula anunciou que pretende articular um programa que liste terras improdutivas e terras devolutas para destinação às pessoas sem-terra que queiram trabalhar, evitando conflitos possessórios (Galvani; Vinhal, 2023). Isso foi um aceno ao setor do agronegócio em razão da instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Outra medida com igual propósito foi o Plano Safra 2023/2024, que destinaria créditos rurais para médios e grandes produtores em valores 27% maiores que nos 12 meses anteriores. Contudo, anunciou também o Plano Safra para Agricultura Familiar 2023/2024, com um volume de créditos rurais 34% maior que o ano anterior – o maior volume da história.
Conclusões
Ao se analisar a estruturação do Poder Executivo brasileiro e as políticas públicas fundiárias e agroalimentares de 2003 a 2023, percebe-se que sob Lula (2003-2010) e parte do governo Dilma (2011-2013), as políticas sociais inclusivas prosperaram. Não se atingiram na plenitude todas as demandas (caso da reforma agrária), mas a institucionalidade democrática existia, com eleições tranquilas, manutenção da confiança no papel do Estado, participação cidadã nas instâncias cabíveis (como o CONSEA) e com o debate político mais tendente às ideias e projetos partidários do que ao personalismo.
Porém, o crescimento global da extrema-direita pelo avanço do neoliberalismo econômico e o cenário brasileiro da década de 2010 implicaram em uma fratura democrática com o impeachment de Dilma, uma guinada à direita do governo federal e uma abertura maior a ideias autoritárias por uma parcela da população, permitindo a vitória do “outsider” Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.
Seu mandato aproximou o país da ruptura democrática pela postura presidencial autoritária sub-reptícia, com aparelhamento das instituições, medidas populistas e gastos exorbitantes para se reeleger e continuar seu projeto excludente de país. Mas, por um conjunto de fatores ainda em estudo, foi derrotado por Lula, que recuperou os direitos políticos com o reconhecimento das arbitrariedades da operação Lava-Jato, e sua frente política ampla.
A estruturação do Poder Executivo em 2023, ante um Congresso de maioria oposicionista, buscou resgatar a estrutura governamental de 2003-2010, haja vista as carências democráticas anteriores. No tocante às políticas fundiárias e agroalimentares, a movimentação do atual governo no tabuleiro político é positiva à democracia, com o estabelecimento de ministérios especializados nessas áreas, a recriação de conselhos e entes afins e o anúncio de medidas para conduzir uma reforma agrária viável nos moldes do atual cenário político-institucional, zelando também pelos vulneráveis.
Por todo o exposto, com a tendência de estruturação institucional adequada às políticas públicas fundiárias e agroalimentares mais democráticas, conclui-se que as medidas governamentais a partir de 2023 permitem o início do retorno à institucionalidade democrática do Brasil e, a partir disso, temas como a soberania alimentar podem avançar no debate político.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
AGÊNCIA CÂMARA NOTÍCIAS. CCJ rejeita por unanimidade terceiro mandato para o Executivo. Câmara dos Deputados, 2009. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/131023-ccj-rejeita-por-unanimidade-terceiro-mandato-para-o-executivo/>. Acesso em 29 jun. 2023.
AGÊNCIA SENADO. Medida Provisória confirma estrutura de governo de Jair Bolsonaro. Senado Federal, 2019. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/01/02/medida-provisoria-confirma-estrutura-de-governo-de-jair-bolsonaro#:~:text=A%20Medida%20Provis%C3%B3ria%20870%2F2019,ap%C3%B3s%20a%20cerim%C3%B4nia%20de%20posse>. Acesso em 25 jun. 2023.
_____. Sancionada com vetos lei que reestrutura ministérios. Senado Federal, 2023. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/20/sancionada-com-vetos-lei-que-reestrutura-ministerios>. Acesso em 25 jun. 2023.
ALONSO, Angela. A política das ruas: protestos em SP de Dilma a Temer. Novos Estudos. São Paulo, ed. esp., p. 49-58, jun. 2017. Disponível em: <https://novosestudos.com.br/wp-content/uploads/2018/07/Angela-Alonso_A-pol%C3%ADtica-das-ruas.pdf>. Acesso em 29 jun. 2023.
CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
CONECTAS. TRAGÉDIA yanomami: os avisos que o governo Bolsonaro não quis ouvir. 2023. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/tragedia-yanomami-os-avisos-que-o-governo-bolsonaro-nao-quis-ouvir/>. Acesso em 29 jun. 2023.
GALVANI, Giovanna; VINHAL, Gabriela. Lula diz que vai listar terras improdutivas: ‘Para quem quiser trabalhar’. UOL, 27/06/2023. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/06/27/lula-assentamento-mst-conversa-com-lula.htm>. Acesso em 30 jun. 2023.
LOYOLA, Leandro. A vingança vem aí. O Bastidor, 2022. Disponível em: <https://obastidor.com.br/politica/a-vinganca-vem-ai-4884>. Acesso em 25 jun. 2023.
PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
REDE PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil. São Paulo-SP: Fundação Friedrich Ehbert, 2022. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acesso em 14 ago. 2022.
SINGER, André; ARAUJO, Cicero Romão Resende de; BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de. Estado e democracia: uma introdução ao estudo da política. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2021.
V-DEM INSTITUTE. Defiance in the face of autocratization: democracy report 2023. Gothenburg: [s.n.], 2023. Disponível em: <https://www.v-dem.net/documents/29/V-dem_democracyreport2023_lowres.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2023.
- Doutorando em Direito pela UNESP, campus de Franca. E-mail: gil.neto@unesp.br ↩︎
- Professora Livre-Docente da UNESP, campus de Franca. E-mail: manigliaelisabete@gmail.com ↩︎
- Entendido como uma particularidade nas emendas parlamentares, são conhecidas como “emendas de relator” e ajudaram Bolsonaro politicamente. ↩︎
Fonte imagética: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Governo Federal lança plano para tirar o Brasil do mapa da fome novamente. 31 ago. 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/governo-federal-lanca-plano-para-tirar-o-brasil-do-mapa-da-fome-novamente>. Acesso em: 16 abril 2024.