André Kaysel[1]
“Avante! Avante!… Pelo Brasil toca a marchar/
Avante! Avante!… nosso Brasil vai despertar/
Avante! Avante!… Eis que desponta outro arrebol/
Marchar, que é a primavera/
Que a pátria espera/
É um novo sol!”
Plínio Salgado, “Avante!”, hino da Ação Integralista Brasileira (1932)
Durante a década de 1930, os nazistas, liderados por Adolf Hitler, se apropriaram habilmente de um verso da letra do hino nacional alemão, “Deutschland über alles”(Alemanha acima de tudo), convertendo-o em um slogan por meio do qual procuravam identificar a nação consigo mesmos. Na mesma época, os integralistas brasileiros, encabeçados por Plínio Salgado, inspirados no nazi-fascismo europeu, mas procurando traduzi-lo às circunstâncias locais, marchavam embalados pelo refrão em epígrafe e sob a divisa “Deus, Pátria e Família”. Ambos os lemas eram, cada um a sua maneira, expressões de um nacionalismo de direita que ganhava adeptos e se fortalecia, tanto no velho como no novo mundo, em meio à crise generalizada do período “entre-guerras”.
No dia 27 de outubro de 2018, Jair Messias Bolsonaro venceu as eleições presidenciais brasileiras sob a palavra de ordem “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que ecoa claramente os cânticos patrióticos daquelas direitas dos anos 1920-1930.
A escolha do slogan obviamente não tem nada de gratuita ou desavisada, revelando muito sobre as credenciais ideológicas do ex-capitão e atual presidente e de seus sequazes mais próximos. Contudo, cabe perguntar: afinal, quão nacionalista é de fato Jair Bolsonaro? Qual é a aderência de seu patriotismo, propagandeado aos quatro ventos, com as linhas de seu programa?
Aqui, vale perguntar sobre o “posto Ipiranga”, como foi jocosamente chamado o economista Paulo Guedes durante a campanha eleitoral, hoje ocupante do posto de ministro da Economia. As posições de Guedes já são bem conhecidas: privatização de todos os ativos estatais que se possam vender; entrega do petróleo e de outros recursos naturais à exploração das multinacionais; drástica redução/eliminação de direitos sociais e trabalhistas – consubstanciadas na proposta de reforma da Previdência encaminhada ao Congresso nacional -, entre outras medidas. Ora, essas proposições não poderiam estar mais distantes do programa econômico implementado ou defendido pelos fascistas, italianos, alemães ou brasileiros dos anos 1930. Por esse, e outros motivos, os apoiadores de Bolsonaro difundiram há algum tempo nas redes sociais a fake news, desmentida até pelo governo alemão, de que o nazismo seria “de esquerda”, disparate com o qual não vale a pena perder tempo.
Mas a incoerência do militar reformado com a matriz ideológica da qual extraiu seu lema de campanha e atual divisa de governo não fica apenas nas propostas para a economia, derivando para os gestos simbólicos e à política externa. Em 2017, visitando os Estados Unidos para granjear simpatias nas rodas das altas finanças, nosso patriota bateu continência para a bandeira das listras e estrelas em uma churrascaria na Flórida, gesto de submissão que faria corar de vergonha qualquer camisa-negra, marrom ou verde do passado. Além disso, seu programa de política externa, representado hoje pelo patético chanceler Ernesto Araújo, propugna um alinhamento geopolítico automático com a potência hegemônica, nutrindo-se de um discurso anticomunista, vazado em termos de “anti-bolivarianismo”, que recorda os piores tempos da Guerra Fria. Aliás, a disposição de Araújo de embarcar nas aventuras belicistas do governo Trump na Venezuela vão tão longe que assustaram, pasmem, o vice-presidente general Hamilton Mourão, quem tem agido de modo explícito para neutralizar os arroubos do titular do Itamaraty.
Por fim, observemos a conduta de outra estrela deste governo, o ministro da Justiça, o ex-juiz federal Sérgio Moro e seus correligionários da Operação Lava-Jato. Ora, na última semana, o país foi surpreendido com a notícia, que escandalizou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, de que, por um acordo entre o Departamento de Justiça dos EUA, a Petrobras e o Ministério Público Federal (MPF), a força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dalagnol à frente, passará a controlar uma bilionária fundação de direito privado, sabe-se lá com quais finalidades. Em síntese, trata-se da criação de um aparato político privatizado, no interior do Estado brasileiro, ao arrepio da lei e avalizado por uma potência estrangeira.
Mas então, para além da farsa e da empulhação, haveria alguma base concreta para os louvores patrioteiros de nossa atual extrema-direita, a qual, na figura do ministro da Educação, Ricardo Velez Rodriguez, quer as crianças perfiladas, entoando o hino nacional e o slogan governamental? Aonde exatamente ela se apoia no nacionalismo de suas predecessoras do entre-guerras? A meu ver, a resposta deve ser procurada nas imagens e concepções de nação difundidas pelos fascistas daquele período.
Inspirados em um heterogêneo caldo de cultura ideológico que ia da contra-ilustração católica ao racismo científico, passando pela versão mais conservadora do romantismo, o fascismo se singularizou por uma concepção organicista da comunidade nacional como um todo homogêneo que não admite fissuras. A contrapartida lógica era a necessidade de se excluir, “depurar” ou “amputar” o corpo nacional de todos os seus membros “defeituosos”, “degenerados” ou “exóticos”, isto é, alheios à essência pura da nação: judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, eslavos, pessoas com deficiência, etc. Qualquer semelhança com os discursos de ódio, veiculados pelos simpatizantes do ex- capitão, contra negros, imigrantes, homossexuais, feministas, petistas e nordestinos não é mera coincidência.
Outro elemento constitutivo do nacionalismo fascista era seu militarismo exacerbado, o qual identificava a nação com suas forças armadas. Assim, o patriotismo desaguava em um culto da masculinidade tradicional, da violência e da ordem. Mais uma vez, não são nada casuais a presença ativa nas hostes do presidente, ele próprio um ex-militar, de inúmeros oficiais do exército, da ativa e da reserva, bem como o culto às armas e à agressividade de muitos de seus simpatizantes civis. Aliás, não deveria ter causado tanta espécie entre representantes da direita liberal que, no último pleito, por ação ou omissão, chancelaram a eleição de Bolsonaro, o mais recente arroubo autoritário do inquilino do Planalto, que em discurso para o Corpo de Fuzileiros Navais, na quinta-feira, 7 de março de 2019, afirmou ser a democracia uma concessão dos militares aos civis.
Porém, essas semelhanças não podem nos fazer perder de vista as diferenças que separam o bolsonarismo e o fascismo histórico. Afinal, como dito acima, o programa de Bolsonaro não faz muita questão da soberania nacional, nem no âmbito econômico, nem no geopolítico. Nada a ver, portanto, com a projeção expansionista de Hitler, alimentada pela escola geopolítica do general Halshoffer.
Em síntese, a inspiração que o ex-capitão extrai do nacionalismo fascista dos anos 1930 é, para dizer o mínimo, um tanto seletiva. Retém daquela fonte o programa cultural de eliminação dos “indesejáveis”, em nome da pureza e integridade do corpo nacional, ao mesmo tempo em que o acopla a um programa econômico ultra-liberal que, em um país dependente como o Brasil, só pode ter consequências anti-nacionais, ou mesmo neocoloniais.
Esse amálgama entre fontes fascistas e neoliberais não é exatamente uma novidade, sendo um traço marcante da contemporaneidade. Já poderíamos encontrar algo assim no Chile sob o general Augusto Pinochet, com sua combinação de catolicismo ultramontano, nacionalismo franquista e liberalismo econômico dos “Chicago Boys”, o “posto Ipiranga” do gorila andino. A propósito, merece destaque a explícita inspiração pinochetista de nossos atuais governantes, alardeada por Eduardo Bolsonaro, filho do presidente com pretensões a ideólogo, em visita ao Chile no final do ano passado.
Hoje, experiências como as do atual governo dos EUA sob Trump expressam características semelhantes, ao articular um programa econômico pró-mercado com uma variante de nacionalismo racista. Nesse sentido, o ex-assessor da Casa Branca e ideólogo Steve Bannon tem procurado difundir internacionalmente o que ele mesmo denomina como uma “direita nacionalista e populista”, cultivando vínculos, não apenas na Europa de Viktor Orbán (Hungria) e Matteo Salvini (Itália), mas também no Brasil de Bolsonaro.
Eu não teria espaço, nos limites deste artigo, para entrar nos pormenores do debate atual sobre essa estranha, ainda que crescente, confluência. Só queria assinalar que faz muita diferença articular nacionalismo autoritário e neoliberalismo em países europeus ou nos EUA, de um lado, e em um país latino-americano, como o Brasil, marcado pela origem colonial e a dependência externa. Entre nós esse fascio-liberalismo é parte de uma estratégia, por hora bem-sucedida, de restauração neocolonial, calcada na exploração cada vez mais intensiva da força de trabalho e dos recursos naturais, que lembra a categoria de “sentido da colonização”, proposta por Caio Prado Jr. em seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo (1942), a qual não pode se dar sem repressão e violência. A racionalidade da coisa está, como sugere David Harvey em seu A Brief History of Neoliberalism (2005), em que, se as políticas econômicas liberais minam “por baixo”os laços de solidariedade social, o reacionarismo moral e cultural impõe, “pelo alto”, o consentimento das grandes massas, justamente suas principais vítimas. É verdade que a contradição entre a face econômica e a cultural do programa de Bolsonaro e seus aliados pode acabar por minar as bases do amplo apoio que as urnas lhe conferiram em outubro do ano passado. Nesse sentido, as críticas ao governo que pulularam no último carnaval e a resposta asquerosa que lhes deu o governante sugerem que, ao contrário do que prega, Bolsonaro não representa, nem jamais representará, a complexidade deste imenso país. Mas, até lá, pode ser tarde demais, com a destruição do que resta de democracia e de Estado nacional.
Assim, caberia às forças democráticas e de esquerda sintetizar suas demandas em um discurso capaz de disputar à direita o imaginário e a simbologia que encarnam a comunidade nacional, tentando responder duas perguntas cruciais: o que somos enquanto coletividade? O que queremos ser enquanto tal? As potencialidades e dificuldades para que a esquerda o faça no Brasil de hoje são, contudo, tema para outro artigo.
[1] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador associado ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC).
Referência imagética:
Twiter de Jair Bolsonaro. Disponível em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/913025024835117056 (Acesso em 17 mar. 2019)