Josnei Di Carlo[1]
“Entre brados e urros de rancor,
os grupos se golpeiam mutuamente
confundindo o agredido com o agressor.”
Dante Alighieri[2]
Em 25 de abril houve mais uma live de Jair Bolsonaro no Facebook. À sua direita, sentou-se o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ao Bolsonaro dar a palavra a Weintraub, ouvimos conselhos paternais sobre o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). “Aí uma dica que eu vou passar para vocês” – começa o ministro – “acho que questões ideológicas, muito polêmicas, como no passado, não vão acontecer esse ano”. De início abstrato, sua intervenção vai se tornando concreta: “foquem mais na técnica de escrever, interpretação de texto, foquem muito em matemática, ciências” – continua – “realmente no aspecto que a gente quer desenvolver: o conhecimento científico, a capacidade da pessoa de desenvolver novas habilidades”[3]. Com isso, põe a dicotomia entre ciências exatas e ciências humanas em um nível caricatural de meme, perdendo de vista as bases do saber científico[4].
Após intervenção de Bolsonaro, Weintraub retoma a palavra. “O Japão, país muito mais rico que o Brasil, está tirando dinheiro público, do pagador de imposto” – e, afastando-se da epistemologia de Facebook para a sociologia de botequim, prossegue – “das faculdades que são tidas como para pessoas que já são muito ricas, ou de elite, como filosofia. Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio”. Estigmatiza, assim, o trabalho intelectual como opção reservada à elite econômica. Por fim, não tinha como seu formalismo pensar em uma política educacional pluralista. “E o Japão reforça [que]” – insiste em seu exemplo, sem lembrar que o governo japonês vai voltar atrás nesta medida educacional[5] – “esse dinheiro que iria para faculdades como filosofia, sociologia, se coloca em faculdades que geram retorno de fato: enfermagem, veterinária, engenharia e medicina”[6].
A live de 25 de abril reforça dois dos alvos preferenciais da guerra cultural promovida pela nova direita: os professores e as universidades. As análises sobre a viabilidade ou não da política educacional proposta por Weintraub são corretas, mas deixam em segundo plano o modus operandi do bolsonarismo. O ministro da Educação pode desconhecer a autonomia didática das universidades brasileiras – constitucionalmente garantida e regulamentada em 1996 pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – em razão de ela ter pouca representatividade para a base social de Bolsonaro, cuja adesão ao punitivismo legitima o rompimento do Estado Democrático de Direito. Conforme o marco legal, são as universidades federais que decidem como alocar seus recursos para as graduações[7], limitando o poder de intervenção do Ministério da Educação (MEC); porém o ataque governista às humanidades tem efetividade política por criar um clima opressivo para cientistas, professores e intelectuais que têm como objeto de análise e fonte de pesquisa a história do Brasil – marcada pelo autoritarismo, por golpes de Estado, violência sistemática contra as minorias e os trabalhadores, desigualdade econômica e social etc.
O Governo Bolsonaro visa sufocar tanto o pensamento crítico quanto a análise da realidade social e política. Para além da estética fascista notada por Bernardo Ricupero[8], o modus operandi do bolsonarismo aproxima-o do totalitarismo[9]. As declarações e atos oficiosos e extraoficiais de Bolsonaro e de seu staff, através de mensagens veiculadas pelo Facebook e Twitter, mantém sua base social mobilizada para impedir que a sociedade seja passível de interpretação. Há a verdade sobre o mundo social que coincide, de um lado, com a narrativa bolsonarista e, de outro, com a racionalidade neoliberal. Interpretar a sociedade, para o bolsonarismo, é “ideologia”, na medida em que revela que Bolsonaro chegou à Presidência da República para administrar a realidade brasileira. A função estratégica do MEC, portanto, é minar a esfera pública[10]. Para isso, mira as humanidades, os professores e as universidades públicas, indispensáveis ao pluralismo. Afinal, o simulacro se mantém como a verdade sobre o mundo social enquanto silencia a crítica e o dissenso.
Como há limites constitucionais à atuação do MEC, o governo trava uma guerra cultural no plano discursivo para encurtá-los. Em 30 de abril, Weintraub deu o primeiro passo para apagar a fronteira entre o legal e o ilegal, ao anunciar que a Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal Fluminense (UFF) tiveram 30% das suas dotações orçamentárias anuais bloqueadas. “Universidades que” – inicia sua justificativa cujos dados sobre as três universidades o contradizem[11] – “em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”. Sua definição de “bagunça” baseia-se na inversão da realidade, por negar, primeiro, a inclusão social como um dos deveres da universidade e por fantasiar, depois, uma cena de filme erótico: “Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus”[12]. O simulacro, aqui, converte o arbítrio em uma decisão técnica[13]. Desvanecendo-o, revela-se o modus operandi do bolsonarismo: destruir progressivamente a esfera pública para sua narrativa se manter como a verdade sobre o mundo social.
Entre a live de 25 de abril e a canetada cinco dias depois, a guerra cultural foi travada pelo bolsonarismo. Em 26 de abril, Bolsonaro usou seu Twitter para anunciar a nova política educacional do MEC. “O ministro da Educação estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”, começa sua primeira intervenção com ares de decisão técnica. “Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte” – enumera revelando que somente a racionalidade neoliberal deve organizar a sociedade – “veterinária, engenharia e medicina”. Apoiando-se na antropologia neoliberal, sua segunda intervenção reduz o indivíduo a uma engrenagem para a reprodução do capital. “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e” – finaliza demonstrando seu apreço pela formação de um trabalhador sem ética, como um Adolf Eichmann[14] – “depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”[15].
Depois da declaração, o ato extraoficial, também no Twitter. Em 28 de abril, o presidente da República autoriza o assédio moral a professores ao publicar vídeo de uma cursista discutindo com sua professora durante a aula de Língua Portuguesa. “Professor tem que ensinar e não doutrinar”, segundo a legenda de Bolsonaro[16]. Ao se ofender com a fala da professora sobre Olavo de Carvalho, a aluna professa: “Não estou pagando cursinho para ouvir sua opinião político-partidária, estou pagando cursinho para assistir aula de gramática”. Se a ausência de contexto no vídeo dificulta a compreensão dos motivos que levaram a professora a citar o guru de Richmond, sua análise desvenda a operação necessária para o simulacro se apresentar como a verdade sobre o mundo social: tornar o arbítrio a medida de todas as coisas. Na discussão, a cursista tinha de negar todos os fatos em contrário para vivenciar a “doutrinação”. Assim, não havia liberdade de cátedra a garantir o direito de expressão da professora, um texto se reduziu à forma gramatical, deixando de enunciar um conteúdo, produto de seu contexto político-social etc. Vivencia-se a “doutrinação” para ela vir a ser a realidade da educação sob o governo Bolsonaro.
Mesmo se a aluna não fosse filiada ao Partido Social Liberal (PSL) e o presidente da República desconhecesse se tratar de uma militante de seu partido[17], o vídeo põe em evidência que a ética é substituída pela banalidade do mal na formação do self sob o bolsonarismo. “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que” – expõe Hannah Arendt citando personagens de Shakespeare – “a determinação de Ricardo III de ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação”. Sublinha Arendt, “ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”[18]. A cursista talvez seja uma arrivista pensando em sua candidatura nas eleições de 2020, mas demonstra a proximidade do modus operandi do bolsonarismo ao totalitarismo. Cumprindo a função estratégica do MEC de minar a esfera pública, Weintraub, subserviente, ignora a Constituição e a LDB e afirma que filmar professores em aula é um direito dos alunos[19] – esqueceu-se de acrescentar, durante a “doutrinação”.
Newton Bignotto observa que, Arendt, “ao estudar o papel do terror na estrutura de domínio total, ela apontou para a destruição dos laços éticos entre os homens como a consequência necessária de uma sociedade sem política”[20]. Sua efetividade passa pelo simulacro, que se torna a verdade sobre o mundo social conforme a legitimidade epistemológica das ciências humanas é colocada sob suspeita, em função de seus instrumentos analíticos serem indispensáveis à compreensão da sociedade e dos laços éticos entre os homens. Daí o papel central do MEC no Governo Bolsonaro ser minar a esfera pública. Por ser uma intersecção entre o campo cultural e o campo político[21], as análises que consideram somente as relações institucionais e governamentais são insuficientes para assimilar o modo bolsonarista de governar, marcado pela indistinção deliberada de declarações e atos oficiosos, extraoficiais e oficiais e pelo apagamento da fronteira entre a legalidade e a ilegalidade.
[1] Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC). Pós-Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
[2] ALIGHIERI, Dante. “Canto sétimo do Inferno”. In: MONIZ, Edmundo. Poemas da liberdade (De Dante a Brecht). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 11 [10-14], 1967.
[3] BOLSONARO, Jair Messias. “Live de quinta-feira com o presidente: previdência, cadastro nacional dos pescadores e mais”. 25 abr. 2019. (45min 40s). Disponível em: <https://youtu.be/njs9mTU0jp8>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[4] Cf. ROQUE, Tatiana. “Não existe ciência exata (e vamos combinar que todas são humanas…)”. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, 25 mai. 2018. Disponível em: <http://cienciahoje.org.br/artigo/nao-existe-ciencia-exata-e-vamos-combinar-que-todas-sao-humanas>. Acesso em: 07 mai. 2019.
[5] BORGES, Helena. “Japão vai voltar atrás em política educacional citada como referência por governo Bolsonaro”. O Globo, Rio de Janeiro, 26 abr. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/japao-vai-voltar-atras-em-politica-educacional-citada-como-referencia-por-governo-bolsonaro-23624694>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[6] BOLSONARO, Jair Messias, op. cit.
[7] RIGHETTI, Sabine; RANIERI, Nina Stocco. “Proposta de esvaziamento das humanas é
equivocada e fere a Constituição Federal”. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 abr. 2019. Disponível em: <https://folha.com/msr7g2oe>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[8] RICUPERO, Bernardo. “Bolsonarismo é um fascismo?”. Boletim Lua Nova, São Paulo, 19 fev. 2019. Disponível em: <https://boletimluanova.org/2019/02/19/o-bolsonarismo-e-um-fascismo>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[9] Em seu uso ideológico, o totalitarismo é antitético ao liberalismo. Em seu uso histórico, se restringe à Alemanha nazista e Rússia stalinista. Mário Pedrosa, entretanto, apropriou-se do conceito para se referir ao Estado que se organiza como empresa para a reprodução da burguesia e acumulação do capital. O totalitarismo, para ele, não só deixa de ser antitético ao liberalismo como se torna inerente ao capitalismo pós-Segunda Guerra. (Cf. PEDROSA, Mário. A opção imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966) Em 2018, no Seminário Internacional Ameaças à Democracia e a Ordem Multipolar, Marilena Chauí define o conceito como a transformação de “todas as instituições sociais em uma única instituição homogênea”. No neoliberalismo, a empresa é a organização a homogeneizar o Estado e a sociedade. (CHAUÍ, Marilena. “O neoliberalismo [de Bolsonaro] é o novo totalitarismo”. 18 set. 2018. (24min 26s). Disponível em: <https://vimeo.com/290516569>. Acesso em: 07 mai. 2019.) O totalitarismo, neste ensaio, é o encontro da narrativa bolsonarista a homogeneizar o mundo social com a racionalidade neoliberal a harmonizar a organização política e social ao cálculo empresarial. Nessas condições, o self do sujeito está marcado pela atrofia da ética.
[10] Esta afirmação pode ser estendida a todos os ministérios cuja agenda não deveria estar voltada para o retorno imediato do capital. Por exemplo, a atuação de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, está sendo marcada por ataques à pauta ambiental. Somente os ministérios que representam interesses financeiros imediatos e grupos econômicos, como o Ministério da Economia (ME) e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), mantêm agenda voltada para sua área de atuação.
[11] RIGHETTI, Sabine; GAMBA, Estevão. “Alvos de corte, universidades federais deram salto de produção em 10 anos”. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 abr. 2019. Disponível em: < https://folha.com/oxhpkd5n>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[12] AGOSTINI, Renata. “MEC cortará verba de universidade por ‘balbúrdia’ e já enquadra UnB, UFF e UFBA”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 abr. 2019. Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/noticias/ geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[13] Para o fortalecimento da conversão, o imperativo era tornar o ato impessoal. Na noite do mesmo dia, o MEC divulgou nota que o contingenciamento de verbas valia para todas as universidades e institutos federais (MARIZ, Renata. “Ministro da Educação vai cortar 30% das verbas de todas as universidades federais”. O Globo, Rio de Janeiro, 30 abr. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ministro-da-educacao-vai-cortar-30-das-verbas-de-todas-as-universidades-federais-23634159>. Acesso em: 1º mai. 2019).
[14] Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[15] BOLSONARO, Jair Messias. “26 abr. 2019, 14h53”. Disponível em: <https://twitter.com/jair bolsonaro/status/1121713997156425729>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[16] Idem. “28 abr. 2019, 16h44”. Disponível em: <https://twitter.com/jairbolsonaro/status/11224665976445050 89>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[17] O GLOBO. “Jovem que gravou vídeo e expôs professora é filiada ao PSL e pensou em ser deputada”. O Globo, Rio de Janeiro, 30 abr. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/jovem-que-gravou-video-expos-professora-filiada-ao-psl-pensou-em-ser-deputada-23632949>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[18] ARENDT, Hannah, op. cit., p. 310.
[19] AGOSTINI, Renata. “Ministro da Educação diz que filmar professores em aula é direito dos alunos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 abr. 2019. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-educacao-diz-que-filmar-professores-em-aula-e-direito-dos-alunos,70002808189>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[20] BIGNOTTO, Newton. “Arendt e o totalitarismo”. Cult, São Paulo, 12 jan. 2018. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/arendt-e-o-totalitarismo>. Acesso em: 1º mai. 2019.
[21] Cf. DI CARLO, Josnei; KAMRADT, João. “Bolsonaro e a cultura do politicamente incorreto na política brasileira”. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 55-72, jul./dez. 2018.
Referência imagética:
Sérgio Lima – Poder 360 (8 de maio de 2018)