José Lindomar Coelho Albuquerque [1]
Maria Florencia Salmuni [2]
O primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) acentuou o processo de controle migratório, filtro ideológico e criminalização dos imigrantes, sobretudo de países periféricos, em detrimento das políticas de abertura e garantia de direitos humanos. Esse movimento em direção às fronteiras mais rígidas para entrada, permanência e deportação de imigrantes é derivado de um conjunto de fatores sobrepostos: a) o alinhamento do atual presidente brasileiro aos discursos e ações anti-imigração dos governos de direita dos Estados Unidos, Israel, de países da Europa e da América Latina, tais como Turquia, República Tcheca e Chile; b) a defesa da soberania nacional, do controle de fronteiras e de um nacionalismo exclusivista que vê determinados estrangeiros como suspeitos; c) a crítica aos direitos humanos e às ações da Organização das Nações Unidas (ONU), vistas como “globalismo” anti-soberania estatal; d) o filtro ideológico e humanitário de facilitação de entrada de imigrantes e refugiados de países administrados por inimigos políticos. Este processo de radicalização da seletividade migratória pode ser verificado nos discursos do atual presidente do Brasil.
Os discursos de Jair Bolsonaro como governante acentuam a postura seletiva em relação aos imigrantes desejáveis e indesejáveis – “Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entra no Brasil via pacto adotado por terceiros” [3]. – na ocasião da saída do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. Também reproduz a visão conservadora que criminaliza a maioria dessas pessoas–¨Nós vemos com bons olhos a construção do muro¨ , ¨a maioria dos imigrantes não têm boas intenções¨, em entrevista que deu a Fox News no contexto de sua visita oficial em março de 2019 aos Estados Unidos[4]. Esta fala reforça o alinhamento ideológico às políticas de controle de fronteiras do governo de Donald Trump. Interessante destacar como a construção de um ¨nós¨ desconsidera os mais de 18 mil brasileiros detidos entre outubro de 2018 a setembro de 2019 por entrar de forma irregular nos Estados Unidos, justamente o período que mais detenções teve em 11 anos. [5]
Estas falas polêmicas do atual presidente estão em sintonia com algumas medidas adotadas durante o primeiro ano de administração. Vale apresentar brevemente algumas das principais ações do governo Bolsonaro em relação ao tema: a saída do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, a Operação Acolhida e a Portaria 666. Trata-se de decisões que impactam diretamente as políticas migratórias do Brasil em âmbito global, nacional e local e que se articulam com normativas e ações inicialmente implementadas no governo de Michel Temer (2016-2018).
O Pacto Global para Migração é um documento aprovado pela maioria dos países membros da ONU e que apresenta princípios básicos e objetivos comuns para gerenciar em âmbito internacional o fenômeno das migrações. O acordo busca combater a discriminação, incentivar a migração regular, combater o tráfico de pessoas, garantir direitos básicos de educação, saúde e previdência para os imigrantes, entre outros. Trata-se de objetivos orientadores para uma “governança” da migração a partir da cooperação e compartilhamento de informações entre os Estados-membros signatários do pacto. A ideia deste acordo surgiu na 71ª Assembleia Geral da ONU em setembro de 2016, com a Declaração de Nova York para Refugiados e Migrantes, na qual contou com o apoio de todos os países membros. Em 2017, os Estados Unidos, governado por Trump, saíram do acordo alegando que as questões migratórias são decisões de soberania de cada país. Em 10-11 de dezembro de 2018, em conferência da ONU em Marrocos, 164 países foram signatários do documento, incluindo o Brasil ainda governado por Michel Temer. Em janeiro de 2019, o novo governo brasileiro anuncia a saída do Brasil deste acordo internacional e se alinha com outros países de governos conservadores que não ratificaram estas diretrizes comuns, tais como Israel, República Tcheca, Hungria, Áustria, Estônia, Austrália e República Dominicana.
Apesar do documento da ONU deixar claro que não se trata de uma interferência nas políticas nacionais de entrada e saída de migrantes e nem tem o poder de ser algo vinculante e obrigatório, a leitura predominante por parte dos países não signatários era que o acordo diminuiria o poder soberano de cada país em matéria migratória. Na ocasião do anúncio da retirada do Brasil do pacto, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, disse que a “imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e soberania de cada país”.[6] O pacto também centra na ideia de uma migração “segura, ordenada e regular”, nos ganhos econômicos do processo migratório e no combate aos agenciamentos e tráficos de migrantes. Apesar dos avanços em termos de direitos humanos contidos no documento, não se trata de um acordo centrado no direito de migrar, na agência do migrante e que pregue o fim das deportações por parte dos Estados-membros. Em última instância, a deportação ainda é um recurso legitimado pelo próprio acordo. No entanto, alguns dos países que saíram do pacto alegam que esta gestão global da migração iria incentivar os deslocamentos de indocumentados, vistos como “ilegais” e “irregulares” . De uma maneira geral, apesar dos limites deste acordo mais centrado na governança da mobilidade transnacional do que da garantia da migração como um direito universal, os governos conservadores passaram a percebê-lo como uma ameaça à soberania nacional e como parte do “globalismo” e da “ideologia de esquerda” presentes na própria ONU. Este “globalismo” deve ser combatido em nome da pátria, da lei, dos costumes, símbolos e culturas nacionais que não devem ser ameaçados por qualquer estrangeiro que queira entrar em nossa casa, como justificou o presidente Jair Bolsonaro.
Se, no caso do Pacto Global para Migração, o novo governo brasileiro se posicionou contrária a uma decisão já assinada pelo governo de Michel Temer, a postura foi de continuidade e de fortalecimento das ações específicas em relação à Operação Acolhida, também iniciada no governo anterior.
A Operação Acolhida foi criada em 2018, quando foi anunciado um plano coordenado pelo governo federal em conjunto com o estado de Roraima. Também foi implementada a Medida Provisória (MP) 820/18 que dispõe de medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária. O fluxo venezuelano era visto como um problema para aquele estado, uma vez que o governo local decretou em dezembro de 2018 estado de emergência. O objetivo principal da operação é ordenar a fronteira, acolher provisoriamente os venezuelanos em abrigos e inseri-los em diferentes estados do país, no denominado processo de interiorização.
O governo de Jair Bolsonaro dá continuidade a esta ação de acolhida dos venezuelanos. Atualmente mais de 15 mil pessoas foram interiorizadas, destas 10 mil no governo do Bolsonaro.[7] É assim como o presidente elogiou a operação comandada pelo Exército Brasileiro no discurso na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2019. Também para criticar o regime político na Venezuela: ¨Trabalhamos com outros países, entre eles os EUA, para que a democracia seja restabelecida na Venezuela, mas também nos empenhamos duramente para que outros países da América do Sul não experimentem esse nefasto regime.”[8] . Comentários como estes estão alinhados às declarações feitas na ocasião da vitória de Alberto Fernández, na Argentina, [9] sugerindo que as medidas do presidente eleito poderiam aumentar a imigração de argentinos ao Brasil. Em outubro de 2019 foi lançada uma nova fase da operação, criando um fundo para arrecadar recursos em Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre a União, Fundação Banco do Brasil (FBB), Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e organizações internacionais ligadas à ONU, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM)[10]. Em dezembro do ano 2019, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) concedeu a condição de refugiados a 21.432 venezuelanos. As solicitações foram analisadas de uma só vez de forma conjunta. Um processo que anteriormente tardava anos em ser analisado caso por caso e deveria ser feito por um órgão colegiado que se reúne uma vez por mês[11].
A Operação Acolhida pode ser vista como uma medida de forte viés ideológico. Trata-se de um plano de ação humanitária para receber as “vítimas” de um país administrado por um inimigo político. Por outro lado, esta ação de acolhimento do governo federal não consegue combater o discurso de ódio e de xenofobia divulgado nos diversos meios de comunicação locais onde esta operação está sendo efetuada. Este discurso é disseminado por meio de fake news expandidas por programas de rádio, televisão, programas policiais que provocam discursos e ações de violência, como os registros de ataques a grupos de venezuelanos em Roraima.
Outra medida implementada no governo de Jair Bolsonaro foi a Portaria 666 em julho de 2019, que altera dispositivos e prazos de deportação de estrangeiros da Lei de Migração (13.445) de 2017, promulgada no governo de Michel Temer. A portaria visa deportar em prazo mínimo de 48 horas pessoas de outras nacionalidades envolvidas em terrorismo, grupo criminoso organizado, tráfico de drogas, armas e pessoas, pornografia infanto-juvenil e ações violentas de torcidas organizadas. Esta normativa acrescenta a categoria jurídica de “deportação sumária” e de “pessoa perigosa” nos marcos da nova legislação migratória. Neste sentido, a portaria assinada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, está em consonância com a implementação de políticas de segurança nacional e seletividade, em que as pessoas em mobilidade transnacional estão em permanente suspeita.
A Portaria faz parte de um processo de acentuação da política de segurança de fronteira já iniciada nos vetos do presidente Michel Temer ao texto da nova Lei de Migração de 2017. Se o projeto de lei destacava sobretudo a migração como um direito, visando substituir o Estatuto do Estrangeiro centrado na segurança nacional, a lei aprovada com os vetos e as novas normativas e portarias publicadas posteriormente vão acentuando o aspecto securitário da fronteira em detrimento das garantias constitucionais mais amplas do direito de migrar.
Estas medidas fortalecem o caráter seletivo das fronteiras para o fluxo migratório durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (Balibar, 2005; Mezzadra, 2015). São ações de continuidade e descontinuidade com o governo anterior e que facilitam a entrada de imigrantes e refugiados específicos e saída por meio da deportação sem prazo hábil de defesa para os denominados estrangeiros “perigosos”. Outras formas específicas de entrada no Brasil seguem um fluxo semelhante aos períodos anteriores, tais como o Acordo de Residência do Mercosul e o visto humanitário aos haitianos, renovado em dezembro de 2019 por meio da portaria ministerial n. 12.
Em relação à permanência no Brasil, uma das barreiras burocráticas enfrentada pelos imigrantes no último ano é a dificuldade nos agendamentos no site da Polícia Federal para solicitar, renovar o Registro Nacional Migratório. Outro obstáculo é encontrar agendamento para emissão de carteira de trabalho digital, documento eletrônico que forma parte de uma das ações que foram lançadas no Pacote de Liberdade Econômica sancionada pelo presidente em setembro de 2019. O imigrante depende de datas no site eletrônico. A inexistência de vagas e disponibilidade insuficientes promovem o ingresso dessas pessoas em mobilidade transnacional ao mercado de trabalho informal, impossibilitando o acesso igualitário de trabalho, serviço bancário e seguridade social como dispõe a Lei de Migração [12].
Estes discursos e medidas seletivas e restritivas em relação aos imigrantes no primeiro ano do governo Bolsonaro provavelmente continuarão nos anos seguintes, consolidando possivelmente uma política de segurança das fronteiras semelhantes a outros governos de direita. Por outro lado, a perspectiva da migração como direito continua sendo pautada por diferentes entidades da sociedade civil em âmbito local, nacional e transnacional, assim como por políticas e legislações específicas no âmbito municipal e estadual executadas governos de perfil mais progressista. Há sempre outras saídas e alternativas a serem construídas e fortalecidas desde outras instâncias de poder e da luta pelos direitos dos migrantes.
[1] Professor de Sociologia do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), coordenador do grupo de pesquisa Laboratório de Investigação em Migrações, Nações e Fronteiras (LIMINAR).
[2] Mestranda no programa de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, membro do grupo de Pesquisa Laboratório de Investigação em Migrações, Nações e Fronteiras (LIMINAR).
[3] Conteúdo publicado no jornal Estadão, disponível no link: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nao-e-qualquer-um-que-entra-em-nossa-casa-diz-bolsonaro-sobre-migrantes,70002672727. A notícia foi publicada em 9 de janeiro de 2019.
[4] Conteúdo publicado no jornal Folha, disponível no link https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/bolsonaro-diz-que-maioria-de-imigrantes-nao-tem-boas-intencoes-e-que-apoia-muro-de-trump.shtml. A notícia foi publicada dia 19 de março de 2019.
[5] Conteúdo publicado no jornal Globo, disponível no link : https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/13/mais-de-18-mil-brasileiros-foram-detidos-em-1-ano-por-entrarem-ilegalmente-nos-eua.ghtml. A notícia foi publicada no dia 13 de dezembro de 2019
[6] Conteúdo publicado na BBC News, disponível no link: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46802258. A notícia foi publicada no dia 8 de janeiro de 2019
[7]Conteúdo publicado no Ministério da Cidadania, Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, disponível no link https://www.defesa.gov.br/noticias/61414-governo-federal-lanca-nova-fase-da-operacao-acolhida-para-acelerar-interiorizacao-de-venezuelanos- A noticia foi publicada no dia 2 de outubro de 2019.
[8] Discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas – Nova York, 24 de setembro de 2019, disponível no link: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/presidente-da-republica-federativa-do-brasil-discursos/20890-discurso-do-presidente-jair-bolsonaro-na-abertura-da-74-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nova-york-24-de-setembro-de-2019, publicado em 27 de setembro de 2019.
[9] Conteúdo publicado no jornal Globo, disponível no link https://oglobo.globo.com/economia/bolsonaro-insinua-que-medidas-de-fernandez-podem-aumentar-imigracao-de-argentinos-para-brasil-1-24143306. A notícia foi publicada 17 de dezembro 2019
[10] Conteúdo publicado pelo Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, disponível no link https://www.defesa.gov.br/noticias/61414-governo-federal-lanca-nova-fase-da-operacao-acolhida-para-acelerar-interiorizacao-de-venezuelanos. A notícia foi publicada no dia 2 de outubro de 2019.
[11] Dados do Comitê Nacional para os Refugiados, Secretaria Nacional de Justiça, disponível no link http://dados.mj.gov.br/dataset/comite-nacional-para-os-refugiados.
[12] BRASIL. Lei 13.445/2017 Seção II Dos Princípios e das Garantias. Art. 3º inciso XI, disponível no link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13445.htm, publicada em 24 de maio de 2017.
Referências bibliográficas:
BALIBAR, Etienne. Fronteras del mundo, fronteras de la política. Alteridades, 15 (30), p. 87-96, 2005.
MEZZADRA, Sandro. Multiplicação das fronteiras e práticas de mobilidade. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 23, n. 44, p. 11-30, 2015.