Michelle de Souza Vale[1]
25 de setembro de 2024
Marcando as eleições municipais de 2024, o Boletim Lua Nova convidou pesquisadoras e pesquisadores de diferentes capitais do Brasil para analisarem e comentarem sobre o pleito em suas cidades. Os textos desta série especial podem ser encontrados aqui.
Não é algo novo ver mulheres candidatas como vice na chapa de algum candidato homem. Aliás essa prática, muito usada, é até muito antiga, principalmente no estado do Amazonas. Em 1979, Eunice Michiles foi convidada pelo partido Arena a se candidatar a uma vaga no senado pela chapa de João Bosco Ramos de Lima, eleito ao cargo de senador, mas chegou a óbito meses depois de sua posse. Eunice, que sequer almejava tal cargo, pois sabia que sua candidatura era para conseguir votos para o seu colega de partido, já que ela tinha sido eleita deputada estadual pelo estado do Amazonas com uma votação bastante expressiva, teve que abandonar seus projetos pessoais como secretária de assistência social do município de Manaus para assumir o maior cargo de toda a sua vida, a de primeira senadora do Brasil (VALE, 2019).
Passados 45 anos da posse de Michiles, o Amazonas ainda se utiliza de tal estratégia para eleger seus candidatos homens, independente se são de partidos de direita ou esquerda. A misoginia impregnada nessas instituições de poder político é uma forte aliada dos partidos na hora de investir em candidaturas femininas e o resultado tem sido o baixo número de mulheres eleitas para cargos de vereança em Manaus. Dos sete candidatos (todos homens) ao cargo de prefeito da cidade de Manaus, três deles possuem mulheres como vices em sua chapa.
No início da corrida pelo tão sonhado podium, mais especificamente a prefeitura, uma dessas mulheres chegou a lançar a sua pré-candidatura, apresentava boas propostas e já contava com o apoio dos eleitores de internet. Contudo, o partido ao qual a ex-candidata se filiou demonstrou interesse por lançar o candidato homem, colocando-a como vice.
Atualmente, temos 41 vereadores na Câmara Municipal de Manaus, sendo 4 mulheres apenas. Desse quantitativo, apenas uma única vereadora se utiliza de seu direito enquanto parlamentar para discursar sobre a pauta da educação pública no município de Manaus. Política esta que, a propósito, ao longo desses últimos quatro anos vem enfrentando críticas por sua gestão nada satisfatória. A vereadora chegou a ser desrespeitada por seus colegas nas poucas vezes que se dirigiu à tribuna. Para uma mulher conseguir se manifestar na tribuna tem sido um desafio à parte já que a casa parlamentar, tomada pelos homens, basicamente impossibilita o discurso feminino. Como bem explicita Perrot (1998, p. 129), “tão logo uma mulher toma a palavra, todos se preparam para se aproveitar de suas dificuldades. Sua voz, seus gestos, seu look, todo o seu corpo é objeto de um exame em que predominam o irônico e o vulgar”.
Em Manaus, observa-se que nenhum movimento social se sente representado pelos atuais vereadores (tanto homens quanto mulheres). Pelo contrário, o conservadorismo tornou-se título de orgulho para muitos que usam o termo de forma deturpada para ganharem a simpatia de alguns eleitores, e assim também ocorre com os candidatos da esquerda. Nossos representantes passam mais tempo a questionar se um e outro parlamentar são de direita ou esquerda para tentar conseguir a simpatia dos eleitores que, de tão confusos, continuam votando muito mais pelo ódio a um partido político do que pela real necessidade da cidade. Lembrando que nem direita e nem esquerda estão preocupados com os anseios da população manauara que suplica por melhor infraestrutura, educação, saúde, segurança, transporte público e melhor atenção ao meio ambiente.
A sub-representação feminina em Manaus não é tão somente em números, mas também em relação às pautas defendidas pelos movimentos de mulheres, que não conseguem espaço para debater com as parlamentares sobre as reivindicações da sociedade manauara, principalmente as reivindicações das mulheres. Segundo dados apresentados pela Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania – Sejusc (2023), foram registrados mais de 4,6 mil casos de violência contra a mulher no Amazonas em 2022, número esse que pode não representar a realidade devido a pandemia que limitou o acesso das pessoas aos órgãos públicos.
A educação especial não tem sido respeitada no município, já que a Secretaria de Educação insiste em não cumprir a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista – Lei N. 12.764/2012, que garante acompanhante especializado (mediador) às crianças autistas que comprovem a necessidade desse profissional durante as aulas. Esse descaso tem contribuído para o crescente número de processos no judiciário local, com pedidos de cumprimento de liminares contra a Secretaria de Educação do Município. O atendimento pedagógico domiciliar, parte da educação especial inclusiva, não oferece atendimento igualitário, muitas vezes não há profissional para atender as crianças que, por motivo de saúde, não podem ir à escola e essas demandas continuam a cair no esquecimento por parte dos nossos governantes.
Nossos futuros representantes precisam lembrar que educação inclusiva vai além da construção e reforma do espaço físico. É respeitar a particularidade de cada Pessoa com Deficiência (PcD) e de crianças que possuem doenças crônicas, que se encontram impossibilitadas de irem à escola e, por isso, deixam de receber atendimento igualitário.
A falta de creches para que as mães possam trabalhar e garantir seu sustento e de seus filhos tem impossibilitado que muitas famílias saiam da condição de pobreza da qual vivem, tornando-se cada vez mais dependentes dos programas de transferência de renda. O empreendedorismo materno tem sido considerado uma alternativa para as mulheres que, após a maternidade, perderam seus empregos e as que após retorno da licença maternidade repensam se vale a pena voltar ao trabalho, já que vão precisar conciliar o cuidado do filho e o trabalho fora do domicílio. A flexibilidade de horários também é um dos motivos que levam muitas mulheres a aderirem ao empreendedorismo porque, ao se tornarem mães, podem acompanhar o desenvolvimento dos filhos de forma mais presente.
Contudo, pouco se orienta as mulheres sobre o lado difícil dessa modalidade de trabalho que é a parte tributária e a falta de planejamento, responsável por fazer muitas famílias fecharem os seus negócios por não conseguirem administrá-lo (VIANA,2022). Pensar em uma sociedade justa sem pensar na melhor condição das mulheres dentro dessa sociedade é esquecer que são elas que representam a maior parte do eleitorado, mas que infelizmente ainda não conseguiram eleger sua representatividade feminina nas casas parlamentares.
Outro tema importante a ser debatido é a situação atual do nosso meio ambiente. Considerada o pulmão do mundo, a Amazônia encontra-se doente em decorrência de tanta fumaça, consequência das queimadas que maltratam a nossa floresta, assim como o seu povo que além de conviver com a maior estiagem da história, precisa conviver com as doenças respiratórias causadas pelo ar completamente poluído. O ar que precisamos para sobreviver tem sido o mesmo que está a nos matar e nessa corrida pela Prefeitura e Câmara Municipal de Manaus, a sobrevivência e bem-estar dos eleitores é o que menos interessa aos candidatos.
A velha política ainda prevalece em Manaus. Mesmo com novos políticos em ação, nem os discursos foram modificados, já que ainda conseguem arrancar os votos dos eleitores. Candidatas de partidos pequenos, com pouca visibilidade e recursos, mal conseguem apresentar suas propostas. Mesmo se utilizando das redes sociais, não conseguem visibilidade porque isso requer investimentos e capital político que muitas não possuem. Afinal, como Bourdieu (2000) assevera, o campo político é um campo de forças em que há uma forma de capital simbólico distribuído de forma desigual.
A desigualdade na política não é tão somente de gênero, mas de classe social, e isso fica bastante evidente nos resultados das eleições quando apenas mulheres esposas e filhas de políticos conseguem se eleger. Conforme dados apresentados pelos próprios candidatos junto ao Tribunal Regional Eleitoral-AM, uma das mulheres candidata a vice-prefeita, a advogada Maria do Carmo Seffair Lins de Albuquerque (NOVO), possui patrimônio maior que o próprio candidato, totalizando mais de 90 milhões. É atualmente, uma das grandes empresárias no ramo da educação privada em Manaus e futuramente, do ramo hoteleiro com a compra do famoso Tropical Hotel Manaus (THM).
Maria do Carmo que é casada com um membro de uma tradicionalíssima família que entrou no cenário político na década de 1970, ganhou notoriedade após mostrar sua perspicácia e determinação enquanto CEO de sua empresa, considerada uma das maiores no ramo da educação privada em Manaus. A família tem trabalhado para perpetuar seu nome em todas as esferas de poder como na Câmara Municipal de Manaus (CMM), Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM), Câmara Federal e no Tribunal de Contas do Estado (TCE-AM).
Outra candidata a vice-prefeita é a advogada Nancy Segadilha (AVANTE), possuindo um capital declarado acima de R$ 2.000.000,00. As demais, Damiana Amorim (PSTU) e professora Renata (Mobiliza), não possuem nem R$ 200.000,00 juntas e são filiadas a partidos com baixa representatividade política.
Nessa corrida pela prefeitura e pelas vagas na Câmara Municipal de Manaus, o que tem ficado claro é que não se faz política sem capital, seja ele financeiro ou político. Que a disparidade de gênero se sustenta não tão somente pelo machismo, mas pela diferença de classe social. A imagem feminina nas candidaturas masculinas, uma estratégia antiga e usada há algumas décadas para simbolizar a quebra da desigualdade de gênero no campo político, atualmente significa o fortalecimento de um grupo no qual homens e mulheres dão-se as mãos para simbolizar o fortalecimento de uma classe política altamente dominadora.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertramd do Brasil, 2000.
BRASIL. LEI Nº 12.764, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2012. Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Brasília, DF: Senado Federal, 2012. Disponível em
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
VALE, M. D. S. MULHERES NO PODER: a trajetória política de Eunice Michiles, a primeira senadora do Brasil. 1. ed. Curitiba: Appris, v. 1, 2019. 187 p.
VIANA, Flávia de Siqueira. Falta de Planejamento é um dos vilões da mortalidade das empresas no Brasil. Comunidade Sebrae. Postado em 23 de março de 2022. Disponível em http://www.sebraepr.com.br/comunidade/artigo/a-falta-de-planejamento-e-um-dos-viloes-da-mortalidade-das-empresas-no-brasil. Data da consulta 23/09/2024.
Fonte imagética: Secretaria Geral da Presidência da República. Representantes da Secretaria de Controle Interno participam de evento na Prefeitura de Manaus. 10 out. 2022. Fotografia de Valdo Leão/Prefeitura de Manaus. Disponível em: <https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2022/outubro/representantes-da-secretaria-de-controle-interno-participam-de-evento-na-prefeitura-de-manaus>. Acesso em: 22 set. 2024.
[1] Possui mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), graduada em Serviço Social, especialização em Antropologia Social e especialização em Direito a Saúde. E-mail: michelle.rs.mrs@gmail.com