Raissa Wihby Ventura[1]
“Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros. NÃO AO PACTO MIGRATÓRIO”[2] e, assim, Jair Bolsonaro (PSL), já nas primeiras semanas do seu mandato, justifica a saída do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. Ainda que essas palavras tenham sido proferidas em português do Brasil, tal posição não pode ser tratada como mais uma de nossas jabuticabas. Sebastián Piñera (Chile), Binyamin Netanyahu (Israel), Viktor Orbán (Hungria) e o vice-premiê italiano, Matteo Salvini fazem coro às críticas ao Pacto.
O Pacto Global, conforme resume adequadamente a matéria “Não é qualquer um que entra em nossa casa” – publicada, no dia nove de janeiro de 2019, no jornal Valor Econômico -, constitui-se como parte dos esforços da Organização das Nações Unidas (ONU) para enfrentar o que é chamado de “crise migratória”. Os 193 membros das ONU, com exceção dos Estados Unidos, concordaram com o pacto e 164 o ratificaram formalmente. Esse foi precisamente o caso do Brasil sob a gestão de Michael Temer (PMDB). O pacto “prev[ê] que o migrante que estiver irregular no país não poderá ser deportado imediatamente e cada caso terá de ser analisado individualmente. Pelo texto, o migrante terá acesso a justiça, saúde, educação e informação. O texto proíbe também deportações coletivas e discriminação na análise sobre a permanência ou não do migrante no país. E recomenda que a detenção de migrantes seja o último recurso, e que, se necessária, a pessoa fique o menor tempo possível detida”[3].
Uma discussão sobre as consequências da saída do país deste Pacto impõe-se com urgência; é incontornável a necessidade de enfrentarmos o modo como a migração está sendo tratada por autoridades políticas que se reivindicam democráticas e de direito. Minha proposta nesta coluna, no entanto e sem desconsiderar a importância de outras discussões, é outra. Já saímos do Pacto, o fato é um dado da nossa realidade. Mas, se a política ainda é (ou deveria ser) o espaço da troca de razões, gostaria de notar o erro contido na tentativa de justificar o injustificável por meio de argumentos que não se sustentam. Mais especificamente, pretendo defender que a analogia do [E]stado com a “nossa casa” é inaceitável.
O primeiro ponto que gostaria de dirigir a quem mobiliza essa posição é relativa ao uso do pronome possessivo “nossa”. Refiro-me especificamente a tentativa de inventar um nós – base da ideologia nacionalista que costuma inflamar defensora(e)s dos muros, das grades e das barreiras – dependente da criação de um sujeito rejeitado, anulado e excluído. É verdade que estados nacionais não podem prescindir da criação do que conhecemos como “comunidades imaginadas”; o aspecto inventivo daquilo que constitui os estados foi e continua sendo fundamental para a manutenção de certa unidade que é imprescindível para a estabilidade da relação entre estado-fronteira-direito-nação. O que questiono nessa ideia de “nossa” é a tentativa de criar uma união – sem arestas – que justificaria o fechamento das nossas fronteiras para quem é identificado e rotulado como o outro, aquela(e) indesejada(o). Estou, nesse sentido, menos preocupada em definir quem faz parte do nossa e mais interessada em refletir sobre o que está contido na definição do que é a “nossa casa” ou, supondo que aceitamos a analogia, do “nosso brasil”.
Quando o presidente desta república tenta sustentar a existência desse nós – a construção da nação é feita por um processo continuado, vale lembrar – ele o faz reivindicando a existência de uma cultura nacional comum, uma “cultura” que nos uniria a ponto de justificar a exclusão e até a expulsão de quem não faz parte desse nós. Se a mobilização de uma ideia de “cultura”, aquela que pressupõe a existência de culturas fechadas, acabadas e imutáveis, não se sustenta do ponto de vista das nossas práticas sociais, vemos, nas palavras ditas pelo capitão reformado, um passo a mais na tentativa de criar uma narrativa que reiteradamente precisa da criação de um nós versus os outros. Segundo Bolsonaro: “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”; “Essa pátria é nossa. Não é dessa gangue que tem uma bandeira vermelha e tem a cabeça lavada”[4]. O nós – essa união verde e amarela pensada por Bolsonaro – é mobilizado tanto para justificar a saída do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, quanto para sustentar a necessidade de uma “limpeza nunca vista na história do Brasil”. Uma limpeza, importa repetir, que passaria pela (re)construção de uma nação na qual os “bandidos vermelhos” estariam banidos da pátria, mas também pela afirmação de uma nação que fecha suas fronteiras e recria outras tantas quando identifica no outro alguém indesejado.
Poderia continuar a reflexão proposta limitando a discussão ao modo como Bolsonaro continua um processo de construção da nação intolerante, antidemocrático, violento e, por conseguinte, antipolítico. Passo, entretanto, para o segundo termo, trata-se do uso da palavra “casa.” Pensemos na relação estabelecida entre esse modo de construir um nós e o tratamento do estado brasileiro como a “nossa casa”. Uma casa habitada por esse nós imaginado e (re)criado nos e pelos discursos/tweets/lives do presidente. Minha proposta é a de enfrentar o problema e o erro que essa analogia entre a casa e o estado incorre. Um erro que está diretamente relacionado com o modo como esse governo tem lidado com a migração internacional.
Aportamos nos usos das analogias. Aprendemos, nas cadeiras da Universidade, que uma boa interpretação precisa ser caridosa; a melhor interpretação é aquela que consegue reconstruir a posição analisada na sua melhor forma. Sendo então caridosa, poderia pensar que a “casa”, mobilizada no trecho em questão, pode ser entendida como uma forma de associação que tem características similares às de um clube e ao casamento, para ficarmos com apenas dois casos, naquilo que diz respeito às regras de entrada e saída de uma associação. Escolho com quem quero casar e se quero casar; escolho quem poderá integrar o meu clube e definitivamente escolho quem poderá entra na minha casa e quem deverá sair. De modo análogo, portanto, devo poder escolher quem entra e quem deve sair do estado do qual faço parte, correto? Nesse sentido, pergunto: deveríamos concordar com Jair Bolsonaro? Estaria justificada a tentativa de sustentar o fechamento das fronteiras por meio da analogia entre a “nossa casa” e o brasil de Bolsonaro?
Gostaria de sustentar que uma vez mais Bolsonaro não está com a razão.
O primeiro erro e, talvez, o mais grave do uso dessa analogia é a suposição de que podemos determinar com quem coabitar nos limites de uma comunidade política. A história coleciona casos de figuras que tentaram escolher com quem gostariam de coabitar. O resultado é invariavelmente o mesmo, qual seja, práticas genocidas. A coabitação, nos ensinou Hannah Arendt[5], é precondição da vida política e, completa Judith Butler[6], ainda que possamos escolher com quem dividir a cama ou nossa vizinhança, não podemos escolher com quem coabitar em uma comunidade política e, em última instância, com quem coabitar a Terra. É essa coabitação que deve ser ponto permanente e não escolhido das decisões políticas, quando e se tais decisões não contiverem latente o germe do genocídio.
Outro problema dessa analogia repousa na suposição de que a relação entre o direito de saída e o direito de entrada pode ser simplesmente transferida de um caso para o outro. Suposição, sustento, inaceitável. Posso sair do meu casamento e não entrar em nenhuma outra relação do tipo e ainda sim sobreviver[7]. Posso sair ou não ser aceita em um clube e seguir minha vida sem necessariamente correr nenhum risco. Posso ser expulsa de uma casa e continuar trilhando meu caminho. O mesmo ocorre com várias outras associações, exatamente porque existem espaços que podem ser ocupados fora dessas associações. Trocando em miúdos, o direito de saída, em todos os casos citados, não depende do direito de entrada para ser efetivo e, em última instância, existir. Esse, no entanto, não é o caso de muitas pessoas que migram.
Sair de um Estado – um tipo de associação política bastante específica – depende da possibilidade de entrar em outro Estado. Existe, é verdade, um espaço que poderia ser ocupado por pessoas sem Estado ou por pessoas que não podem retornar à sua comunidade política de origem. Entretanto, depois dos eventos da Primeira e, sobretudo, da Segunda Guerra Mundial, forçar uma pessoa ao status de sem Estado[8], além de ser moralmente injustificável, significa voltar a cometer erros semelhantes aqueles que condenaram milhões de pessoas aos campos de extermínio[9]. Para reforçar o ponto: a história nos ensinou que o direito de saída depende, para o seu exercício efetivo, da garantia de entrada em outra associação do mesmo tipo, ou seja, em outro Estado. Nesse caso específico, o direito de saída implica a garantia do direito de entrada[10]. Desvincular uma coisa da outra permite a criação desse sujeito que pode continuamente ser tratado como objeto das leis e do arbítrio do poder soberano. Trata-se de um sujeito, uma vida que pode ser continuamente silenciada, apagada; uma vida que pode ser pausada e condenada à clandestinidade e, em última instância, à ilegalidade.
A posição de Bolsonaro é uma peça em um quebra-cabeça que ainda está sendo montado, mas que já deixa ver os traços de uma imagem. Na utopia distópica de Bolsonaro, a nação brasileira é definida por uma língua, uma moeda, um território, um governo, uma ideologia política e duas cores, uma é verde e a outra é amarela. Nesse brasil verde e amarelo o estado pode reivindicar não apenas a criação de fronteiras entre o país e o resto, como está apto a recriar fronteiras intransponíveis entre esse nós de Bolsonaro e aquelas e aqueles que preferem outras cores.
Para finalizar, gostaria de retomar o título para sustentar que o Estado Democrático não é a casa de ninguém em particular precisamente porque precisa ser a casa dos vários nós e dos muitos outros. É nesse sentido que concluo: O Estado brasileiro não é a sua casa, Jair Bolsonaro. E, mesmo se fosse este o caso, há princípios e regras – no contexto de um Estado Democrático e de Direito – que não podem ser desrespeitados nem mesmo no âmbito daquilo que definimos como privado. Então, se for para estampar camisetas com slogans, a minha fixaria com letras garrafais, de um lado “o pessoal é político, Jair” e, do outro, ” Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça“.
[1] Mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora associada ao CEDEC, ao Grupo de Pesquisa em Teoria Política (GETEPOL) e ao Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI). Realiza pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Unicamp.
[2] Este trecho é parte de conteúdo publicado no jornal Valor Econômico que pode ser visualizado utilizando o link https://www.valor.com.br/politica/6056607/nao-e-qualquer-um-que-entra-na-nossa-casa-diz-bolsonaro-sobre-pacto. A matéria foi publicada em 09/01/2019.
[3] Este trecho é parte de conteúdo publicado no jornal Valor Econômico que pode ser visualizado utilizando o link https://www.valor.com.br/politica/6056607/nao-e-qualquer-um-que-entra-na-nossa-casa-diz-bolsonaro-sobre-pacto.A matéria foi publicada em 09/01/2019.
[4] Este trecho é parte de conteúdo publicado pela agência Reuters que pode ser visualizado utilizando o link https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN1MW017-OBRTP A matéria foi publicada em 21/10/2018.
[5] Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[6] Judith Butler. Caminhos Divergentes: Judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 104.
[7] Supondo uma sociedade em que a separação e/ou o divórcio não constituem um problema social.
[8] O status de uma pessoa sem estado, apátrida é bastante específico e não se confunde com o status de um solicitante de refúgio. No entanto, uma pessoa que sai do país de origem por causa de perseguição, fome, colapso total das instituições, teria a possibilidade de retornar a esse país quando as fronteiras do seu destino se fecham? Não me parece ser esse o caso. Contemporaneamente a situação das pessoas sem estado é recriada em contextos no qual sujeitos são tratados como objetos, isto é, suas vozes são continuamente silenciadas no espaço da política.
[9] Para uma reflexão sobre esse fenômeno ver: Hannah Arendt. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[10] Para uma formulação acabada do argumento sobre a relação entre direito de entrada e direito de saída ver: COLE, P.; WELLMAN, C. H. Debating the ethics of immigration: is there a right to exclude? Oxford: Oxford University Press, 2011.
Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ARENDT, Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BUTLER, Judith. Caminhos Divergentes: Judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017
COLE, P.; WELLMAN, C. H. Debating the ethics of immigration: is there a right to exclude? Oxford: Oxford University Press, 2011.
Ilustração:
Gabe, a quem o Boletim Lua Nova agradece, é designer gráfico, cartunista e quadrinista, formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) em Desenho Industrial. Trabalha como freelancer e organiza o coletivo de publicação independente Quadrinhos Fora da Panela. Instagram: @gabecartum