William Torres Laureano da Rosa[1]
No quadro atual da pandemia do COVID-19, um dos temas que despertam grande preocupação são as mudanças nas legislações e práticas migratórias e de refúgio, especialmente sobre as consequências para pessoas que sofrem com o deslocamento forçado se, e quando, a situação retornar para certa normalidade. É evidente que uma pandemia que conseguiu se espalhar por pelo menos 177 países, infectando mais de 2 milhões de pessoas e matando mais de 165 mil, até meados de abril de 2020, preocupa e forçou muitos dos governos a tomarem medidas drásticas para proteger a saúde e a vida de seus cidadãos[2]. Diante dessa calamidade, muitos governos procuraram restringir viagens internacionais e incluíram determinações que violam direitos humanos garantidos em tratados internacionais, prejudicando diretamente uma parcela em situação vulnerável[3] que depende da proteção internacional.
A restrição de viagens internacionais e o fechamento de fronteiras como método efetivo para combater pandemias não é um consenso. Estudos publicados no portal da Organização Mundial da Saúde (OMS)[4], nos quais se buscaram verificar a efetividade dessas medidas durante a pandemia da Influenza A(H1N1), mostraram, por meio de modelos matemáticos, que a restrição de viagens internacionais só tem o poder de retardar a curva de contaminação quando houver mais de 90% na restrição de viagens longas e, mesmo assim, somente quando essa restrição estiver aliada a outros formas de combate à doença. Isso porque as simulações apresentadas pelo estudo sugeriram que uma restrição da ordem de 99% dos voos internacionais ajudaria o Reino Unido a retardar a epidemia domesticamente em pelo menos 12 semanas, mas que esse efeito seria reduzido para uma a duas semanas se essa taxa de restrição caísse para 90%. Por isso, em sua recomendação de 29 de fevereiro de 2020, a OMS permanece convicta de que, na maioria das situações, a restrição de viagens internacional é inefetiva.
Ainda assim, a maioria dos Estados optou por algum grau de restrição da mobilidade internacional e pelo fechamento de fronteiras. O Pew Research Center constatou que há baixo movimento de pessoas entre fronteiras e que alguns países fecharam as portas, inclusive para os seus próprios nacionais, em resposta à pandemia. Segundo o instituto de pesquisa, pelo menos 91% da população mundial vive em países com algum tipo de restrição, enquanto aproximadamente 3 bilhões de pessoas (39% do total) vivem em lugares onde as fronteiras estão completamente fechadas. Outros países realizam algum tipo de quarentena para aqueles que chegam no país[5]. Essa situação gera grande preocupação com o movimento de refugiados que, na sua grande maioria, atravessam as fronteiras para um país vizinho ao seu[6] e os fazem não porque querem, mas “porque [o refugiado] não tem outra opção suportável”[7].
Os primeiros contaminados com essa doença, entretanto, não foram refugiados, nem qualquer pessoa com necessidade de proteção internacional. Foram aqueles que, na metáfora de Zygmunt Bauman[8], são os “turistas,” ou seja, cidadãos do mundo, integrados ao sistema capitalista, que vivem e consomem intensamente neste mundo globalizado e para quem as limitações geográficas não existem. Foram esses turistas, esses homens de negócios e viajantes internacionais, que primeiro transmitiram a doença. Nos EUA, o primeiro paciente foi uma pessoa que retornava de Wuhan (China) após ter visitado familiares na cidade. Em Nova York, no foco da pandemia no país, o primeiro caso foi de uma mulher, moradora de Manhattan que trabalha na área da saúde, que havia regressado recentemente do exterior. No México, foi um pesquisador universitário que havia regressado da China e no Brasil um dos possíveis primeiros casos é de um turista que regressava da Itália.[9]
Regressemos a Bauman, para quem “os vagabundos são o refugo de um mundo que se dedica ao serviço dos turistas[10]”. Se foram os “turistas” que primeiro se tornaram vetores dessa doença e a espalharam para diversos lugares do mundo, por que serão os mais necessitados e vulneráveis que estão pagando a conta, sofrendo com restrições desnecessárias que os impedem de procurarem uma situação melhor? Muito embora a pandemia tenha prejudicado a mobilidade da coletividade, até o momento não houve séria reflexão sobre como o atual fechamento de fronteiras prejudicou e vai prejudicar aquelas pessoas que precisam atravessar as fronteiras para protegerem suas vidas para não sofrerem violações de direitos humanos.
No Brasil, por exemplo, onde atualmente se enfrenta uma emergência de refugiados provenientes da Venezuela, estes estão sofrendo um problema adicional com a pandemia. Hoje, o país conta com mais de 500 mil venezuelanos acolhidos em território nacional[11] e que solicitam refúgio devido à situação de grave e generalizada violação de direitos humanos, conforme reconheceu o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE/MJ) em junho de 2019.[12] Além disso, houve um longo processo de aprendizagem sobre acolhimento e ordenamento de fronteira, especialmente em Pacaraima (RR) com a atuação do governo federal na Operação Acolhida. Entretanto, na contramão dessa atuação, uma das primeiras medidas tomadas durante a pandemia na temática migratória tende a violar direitos. Citamos, neste sentido, o fechamento da fronteira com a Venezuela, previsto na Portaria Interministerial no. 120, publicada no Diário Oficial em 18 de março de 2020 e assinada pelos ministros da Casa Civil, Justiça e Segurança Pública, e Saúde. Indicando questões relacionadas à saúde, o governo brasileiro se esquece que o deslocamento forçado não ocorre simplesmente porque as fronteiras estão abertas ou fechadas, mas por necessidade de sobrevivência. O fechamento das fronteiras no Norte pode gerar um aumento de deslocamentos por vias irregulares e perigosas, normalmente com a contratação de coiotes, uma vez que parte das fronteiras brasileiras não são possíveis de serem fiscalizadas.
Como medida para desestimular esse cruzamento de fronteiras, a Portaria 120 prevê ainda a punição para aqueles que realizarem um deslocamento durante sua vigência nas esferas cíveis, criminais e administrativa, prevendo a deportação imediata e a inabilidade para a solicitação da condição de refugiado. A portaria, portanto, prevê punições mais graves do que as presentes na lei de migrações e no Direito Internacional dos Refugiados.
Qualquer aplicação das punições previstas na portaria aos venezuelanos será um descumprimento da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, da qual o Brasil é parte, e da lei nacional 9474/97, uma vez que o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) reconheceu a situação venezuelana como de refúgio, aplicando o procedimento de reconhecimento prima facie. As normativas internacionais preveem que será garantido àqueles que solicitam o reconhecimento da condição de refugiado o direito de não serem devolvidos ao país de origem, princípio esse denominado de non-refoulement, e que não haverá a punição pela entrada irregular. Assim está no artigo 31 do Estatuto dos Refugiados[13] e no art. 8º da lei brasileira de refúgio[14]. O governo brasileiro, portanto, fere a sua própria legislação, violando os direitos internacionalmente consagrados dos refugiados de terem o seu pedido analisado independente das estratégias utilizadas para ingressar no país de refúgio.
Verificamos, assim, o uso do momento de pandemia para legitimar a publicação de uma portaria do Poder Executivo prevendo uma punição inexistente na legislação (inabilidade da solicitação de refúgio[15]) ou violando direitos previamente estabelecidos (deportação imediata, sem respeitar o contraditório e a ampla defesa[16]). Essa não é, entretanto, a única forma que direitos de refugiados e migrantes estão sendo violados. Assim como no Brasil, outros países estão se aproveitando do contexto de pandemia pelo COVID-19 para promulgar atos normativos ou tomar decisões contrárias aos direitos dessas populações vulneráveis. Nesse sentido, a pandemia tem legitimado violações importantes contra direitos de migrantes e refugiados, seja na impossibilidade de solicitar a condição de refugiado no Brasil, seja nas deportações em massas e na suspensão das autorizações de residência nos EUA[17]. A pandemia, enquanto momento de exceção da normalidade previamente constituída, não pode ser utilizada como pretexto para retirar direitos. Para aqueles que buscam o acolhimento brasileiro e que ficarão indocumentados por força da Portaria Interministerial 120, pouco sabemos como essa situação será revertida, se é que conseguirão gozar dos seus direitos quando as políticas de emergência forem revertidas.
[1] Doutor em Relações Internacionais pela University of Sussex, Pós-doutor e Professor convidado do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Tem atuado profissionalmente com o tema de migrações internacionais e proteção de refugiados e solicitantes de refúgio.
[2] The New York Times, A Timeline of the Coronarieus Pandemic, disponível em: https://www.nytimes.com/article/coronavirus-timeline.html, acesso em 22 de abril de 2020.
[3] A situação de vulnerabilidade de migrantes e refugiados foi reconhecido pelos Estados, incluindo o Brasil, na Declaração de Nova York para Migrantes e Refugiados de 3 de outubro de 2016 (documento A/Res/71/1 da Assembleia Geral da ONU)
[4] Mateus, A.L.P., et all. “Effectiveness of travel restrictions in the rapid containment of human influenza: a systematic review”, Bulletin of the Wrold Health Organization, available at: https://www.who.int/bulletin/volumes/92/12/14-135590/en/, setembro, 2014.
[5] https://www.pewresearch.org/fact-tank/2020/04/01/more-than-nine-in-ten-people-worldwide-live-in-countries-with-travel-restrictions-amid-covid-19/
[6] UNHCR. Global Trends 2018, disponível em https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5d08d7ee7/unhcr-global-trends-2018.html, acesso: 15 de abril de 2020;
[7] Bauman, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Editora ZAHAR, 1999, p. 101.
[8] Bauman, Z. Idem.
[9] Holshue, M.L, et. All. “First Case of 2019 Novel Coronavirus in the United States”. New England Journal of Medicine, March, 2020, pp. 929 – 236; The New York Times, op. cit.; https://www.nbcnewyork.com/news/coronavirus/person-in-nyc-tests-positive-for-covid-19-officials/2308155/; https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-confirma-1-caso-de-coronavirus-medidas-de-cuidado-continuam-as-mesmas,70003210635. No caso brasileiro, aponta-se que a dificuldade em testar rapidamente as pessoas e o desconhecimento da doença pode fazer com que outros casos tenham aparecido antes deste.
[10] Bauman, Z. Op. cit.
[11] Números governamentais disponíveis também na Plataforma Inter-agencial R4V: https://r4v.info/es/situations/platform/location/7509.
[12] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/06/19/conare-reconhece-grave-e-generalizada-ameaca-aos-direitos-humanos-na-venezuela-para-agilizar-analise-de-pedidos-de-refugio.ghtml.
[13] Os Estados Contratantes não aplicarão sanções penais em virtude da sua entrada ou permanência irregulares, aos refugiados que, chegando diretamente do território no qual sua vida ou sua liberdade estava ameaçada no sentido previsto pelo art. 1º, cheguem ou se encontrem no seu território sem autorização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes exponham razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares.
[14] Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.
[15] Não há previsão desse tipo de inabilitação na lei 9.474/97 ou na Convenção de 1951.
[16] Direitos garantidos no art. 51 da lei 12.445/2017.
[17] The New York Times. “U.S. Deported Thousands Amid Covid-19 Outbreak. Some Proved to Be Sick”, disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/18/us/deportations-coronavirus-guatemala.html, acesso em 22 de abril de 2020.
Referência imagética:
https://exame.abril.com.br/mundo/brasil-tera-2-vezes-mais-venezuelanos-em-2019-diz-onu/(Acesso em 3 de maio de 2020)