Beatriz Rodrigues Sanchez[1]
A centralidade da questão de gênero nas eleições deste ano mostra o que nós, pesquisadoras feministas, temos apontado há tempos: o feminismo não é somente uma luta cultural, cortina de fumaça ou pauta identitária. O feminismo está no centro da disputa sobre os sentidos da democracia.
Ao mesmo tempo, na dimensão da pesquisa acadêmica, o gênero não pode ser visto apenas como um tema, um recorte ou uma variável. É possível adotar um olhar feminista e interseccional para qualquer tema de pesquisa. Isso vale para todas as áreas de conhecimento e, mais especificamente, para a Ciência Política, disciplina que tem sido resistente em considerar as implicações de uma abordagem feminista de forma mais abrangente.
Partindo destes pressupostos, neste breve texto, apresentarei algumas considerações sobre as eleições de 2022 desde um ponto de vista feminista.
As mulheres tiveram um papel fundamental ao longo de toda a corrida eleitoral, sejam as eleitoras ou as candidatas. Mas qual é a relação entre essas mulheres e o feminismo?
As candidatas à presidência Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil) se autodeclararam feministas diversas vezes ao longo da campanha, em um evidente aceno ao eleitorado feminino, que foi intensamente disputado pelos candidatos. Mas de qual feminismo elas estavam falando? De acordo com Tebet, o feminismo seria a luta por condições igualitárias entre homens e mulheres. Ela tem razão, mas o feminismo não se limita a isso. Como já nos ensinaram os feminismos negros, marxistas e decoloniais, não há feminismo possível sem que haja uma discussão estrutural sobre capitalismo, colonialismo e racismo. Assim, é preciso que aprofundemos e qualifiquemos o nosso entendimento sobre os sentidos dos feminismos.
Simone Tebet teve um papel importante na eleição de Lula. Especialmente a partir do segundo turno, as mulheres ganharam relevância. Além de Tebet, a deputada federal eleita Marina Silva, a senadora Eliziane Gama e a futura primeira-dama Rosângela da Silva (Janja), foram algumas das mulheres que se engajaram na campanha. Essa estratégia surtiu efeitos, uma vez que Lula teve mais votos entre as mulheres brasileiras do que Bolsonaro. Vale destacar que, durante toda a campanha, a maioria das mulheres se manteve estável na indicação de intenção de voto em Lula, de acordo com as pesquisas.
A rejeição do eleitorado feminino a Bolsonaro começou muito antes das eleições de 2022. As mulheres feministas foram protagonistas do movimento que ficou conhecido como “Ele Não!”, que levou milhares de pessoas, majoritariamente mulheres, às ruas de todo o país contra a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Alguns analistas, naquele momento, apontaram o movimento “Ele Não!” como um dos responsáveis pela vitória do atual presidente, uma vez que teria contribuído para a polarização do eleitorado. No entanto, defendo que o movimento foi crucial na denúncia dos atos machistas de Bolsonaro, elemento decisivo para a queda de sua popularidade e, consequentemente, para o resultado das eleições de 2022.
Voltando para as eleições deste ano, durante o processo que antecedeu o primeiro turno, foi chocante o despreparo de todos os candidatos em relação à agenda de gênero e revoltante o silêncio ensurdecedor sobre a agenda racial, a despeito do avanço das teorias e ativismos feministas e antirracistas no Brasil. Como ilustração deste fato, cito o debate ocorrido na TV Bandeirante antes do primeiro turno, momento no qual os candidatos com mais chances de serem eleitos não se comprometeram com a paridade de gênero na formação dos Ministérios.
Este é um tema que tem ganhado cada vez mais importância, inclusive internacionalmente. O governo progressista de Boric no Chile, por exemplo, montou o seu Ministério de forma paritária em termos de gênero. Este tema voltou à tona mais recentemente no Brasil, após a divulgação do resultado do pleito, quando os debates envolvendo o processo de transição começaram a surgir. É fundamental que não apenas mulheres, mas também pessoas negras estejam representadas na equipe de transição e, posteriormente, na composição dos Ministérios. A indicação de pessoas como Silvio Almeida, Douglas Belchior, Nilma Lino Gomes, Preta Ferreira e Anielle Franco para a equipe de transição foi uma ótima sinalização nesse sentido. É importante ressaltar, entretanto, que não queremos mulheres apenas na Secretaria de Políticas para as Mulheres ou pessoas negras apenas na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. Queremos mulheres, pessoas negras e representantes de outros grupos marginalizados nos diversos Ministérios, inclusive naqueles com maiores orçamentos, como os da Economia, da Saúde e da Educação.
Um avanço importante no sentido da promoção de políticas para grupos marginalizados foi a promessa feita durante a campanha, pelo presidente eleito, de criar um Ministério dos Povos Originários. Espera-se que mais do que um ato simbólico, a criação deste Ministério implique a destinação de recursos e a criação de políticas públicas que garantam e reconstruam os direitos dos povos indígenas do nosso país.
Um outro aspecto que marcou o período eleitoral, desde uma perspectiva feminista, foi a violência política de gênero. O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, foi protagonista de alguns dos principais episódios desse tipo de violência. A forma como tratou mulheres jornalistas em rede nacional é apenas um entre tantos sinais daquilo que tem sido uma das marcas de seu governo: a misoginia.
Os desinvestimentos em políticas públicas de promoção da igualdade de gênero e racial também são reflexo do projeto político do atual governo. A ex-ministra Damares Alves, ao invés de apoiar o investimento em políticas que promovessem a igualdade de gênero, protagonizou casos que iam no sentido contrário, como quando dificultou o acesso ao direito ao aborto de uma criança de onze anos que engravidou como consequência de um estupro ou quando divulgou informações falsas sobre supostos atos de exploração sexual de crianças na Ilha de Marajó (PA). Assim, o futuro governo Lula terá uma tarefa difícil: reconstruir as políticas para as mulheres, pessoas negras e outros grupos marginalizados que foram desconstruídas durante o governo Bolsonaro (e até mesmo antes, durante o governo interino de Michel Temer), inclusive políticas de combate à violência doméstica.
Além da violência política de gênero e do corte de investimentos em políticas para grupos historicamente marginalizados, a forma desastrosa como o governo de Jair Bolsonaro lidou com a questão da pandemia também pode ser um dos fatores que explicam a maior rejeição do eleitorado feminino ao atual presidente. As mulheres, principalmente as mulheres negras, por conta da divisão sexual e racial do trabalho, ainda hoje são as principais responsáveis pelo cuidado de pessoas idosas, crianças e doentes. As enfermeiras estiveram na linha de frente da batalha contra a covid-19. A primeira pessoa a morrer por conta do vírus no estado do Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica. Esses são elementos que revelam que as mulheres foram diretamente afetadas pelos equívocos na condução do combate à pandemia no Brasil e, por isso, podem ter sido tão importantes na derrota eleitoral do candidato à presidência.
Enfim, apesar dos enormes desafios que se colocam para o próximo governo, a partir de um ponto de vista feminista, a perspectiva futura e os primeiros sinais dados pela equipe de transição são positivos. Torço para que o próximo governo seja um ponto de inflexão rumo à (re)construção de um país mais justo e igualitário para todas, todos e todes.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências imagéticas:
Conectas Direitos humanos. O que motiva a violência política contra mulheres no Brasil. 8 mar. 2022. Fotografia de Mídia Ninja. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/o-que-motiva-a-violencia-politica-contra-mulheres-no-brasil/>. Acesso em: 11 nov. 2022.
[1] Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Pós-doutoranda no Programa Internacional de Pós-Doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pesquisadora da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política. E-mail: beatriz.rodrigues.sanchez@gmail.com