Andrei Koerner[1][2] e Sebastião Velasco e Cruz[3]
O artigo reproduzido parcialmente abaixo foi escrito há dois meses para ser publicado na imprensa francesa, mas permaneceu inédito. Não procuramos explicar as razões pelas quais a imprensa internacional deu tão pouco espaço para as denúncias de que o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (PT) é um golpe contra a democracia no Brasil. O texto permanece atual, pois a divulgação da gravação de conversa telefônica do senador Romero Jucá (PMDB), um dos principais artífices do golpe do impeachment entre os parlamentares, revela o que faltava naquele momento para explicar a teratologia jurídica: o complô político que liga atores, atos omissões e fatos aparentemente dispersos.
Teratologia jurídica significa a arte de criar entes impossíveis perante o direito. Nos últimos anos, ela se expandiu no Brasil, não pela obra de leigos ou iniciantes desajeitados, mas de juristas experientes. E mesmo de juízes, aos quais caberia garantir os direitos fundamentais e assegurar a integridade da ordem jurídica da democracia.
Essa situação tem sido promovida pela Operação Lava-Jato – as investigações de autoridades federais sobre as denúncias de corrupção na Petrobrás. Iniciada há quase dois anos, a Operação desdobrou-se em várias frentes e aparece como uma campanha de regeneração moral, sem objeto fixo e sem fim à vista.
Mas é falsa moral, pois a Operação tem objetivos políticos evidentes. As suas investigações se voltaram desde o início exclusivamente contra políticos e empresários associados ao governo federal. Cometeram-se repetidas violações de direitos dos acusados, como é amplamente divulgado e conhecido.
Os investigadores divulgam evidências ilegalmente, de forma seletiva e em sintonia com os acontecimentos políticos. As acusações são difundidas, e recebidas pelo público, como verdades emanadas de julgamentos imparciais em processos regulares, com ampla defesa e baseados em provas objetivas.
As violações são possíveis porque ocorrem num ambiente político muito favorável. O elemento chave é a decisão dos derrotados de não aceitarem o resultado das eleições presidenciais de 2014. Inconformados, tentaram evitar a diplomação da Presidenta Dilma Rousseff e, frustrados nesse intento, lançaram-se em uma campanha de massa pela sua deposição.
No plano jurídico, o foco principal é o impeachment da Presidenta que há suas semanas foi afastada da Presidência há por decisão do Senado Federal. Esse passo representa uma clara violência ao Estado de direito. É preciso afirmar e repetir: no presidencialismo, o afastamento por impeachment é efeito de condenação pela prática de grave crime de responsabilidade contra a Constituição. Não há crime, não há provas e a sanção demandada – a destituição da Presidência – é desproporcional a qualquer falta que seja imputada a ela.
Mas o alvo principal da campanha é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, líder popular sem paralelo na história nacional. Apesar da intensa campanha de difamação, ele permanece como o mais forte candidato às eleições presidenciais de 2018. Para prevenir o risco de uma quinta derrota eleitoral, a oposição procura destruir sua imagem, despi-lo da condição de homem público, expô-lo como culpado dos mais nefandos crimes.
Não acreditamos em bruxas, mas estamos certos de que elas existem. É preciso descrer nos fantasmas jurídicos que ocupam a cena para ver a face dos que os sustentam. A luta contra a corrupção é usada para contestar a vontade popular expressa nas urnas. O impeachment da Presidenta Dilma não tem fundamento. As medidas contra Lula são arbitrárias. Esse jogo é a parte visível de um programa para a reorganização conservadora da sociedade brasileira. Ele constitui uma ameaça, não tanto ao governo e ao PT, mas ao Estado de direito e à democracia.
O Brasil vive uma crise profunda. Há um golpe jurídico-político em andamento e seus porta-vozes tentam difundir do Brasil a imagem de um país unificado contra um governo corrupto. Mas a corrupção não é do governo e o Brasil é hoje uma nação dividida. A resistência é ampla e vai se manifestar com mais força no futuro próximo. Ela não cessará se os intentos da frente oposicionista forem atingidos.
Depois de executado o afastamento da Presidenta pelos comparsas do golpe, foi revelado o complô e os seus objetivos mais amplos. No dia 23 foi publicada gravação de uma conversa telefônica em que o senador Romero Jucá revela a Sérgio Machado que o complô para afastar a Presidenta da Presidência tem o propósito de encerrar a Operação Lava-Jato. A operação já realizou o objetivo específico de manchar a reputação política de Lula e enfraquecer o PT e seus aliados populares. Assim, os demais investigados pela operação aliaram-se com os potencialmente envolvidos, os políticos da oposição, para afastar o governo, promover a impunidade e renovar os esquemas de corrupção do Estado brasileiro.
O senador Romero Jucá menciona que conversou com ministros do STF para a condução do complô. A raiz da sequência contraditória das decisões do STF está desvendada. Ela se explica porque a maioria dos ministros do STF apoia o golpe, e por isso eles julgam imediatamente alguns processos, enquanto deixam outros casos esperarem uma decisão por muito tempo. Em alguns casos afirmam altivamente o seu poder normativo sobre a política enquanto noutros optam pela autocontenção. Explica-se, sobretudo, a imobilidade do plenário do STF no mandado de segurança proposto pela Presidenta Dilma Rousseff contra o processo de impeachment, que sofre de duas nulidades insanáveis: o notório desvio de finalidade da atuação do processo pelo Presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB) e a violação do direito de defesa da Presidenta por terem os partidos decidido obrigar seus parlamentares a aprovarem a abertura do processo, contra a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A regra para as decisões e omissões do STF é uma só: favorecer o complô golpista e contrariar o governo legitimamente eleito.
É indispensável que a situação existente seja revertida, ou seja, que a Presidenta Dilma volte ao exercício da Presidência. Deverão ser realizadas investigações para processar e condenar os envolvidos neste complô político, incluídos os ministros do STF. Para isso, é necessário realizar novas eleições para o Congresso, pois a legislatura atual não tem qualquer fiabilidade política ou moral para realizar tal processo.
[1] Artigo de outubro de 2016. Publicado em http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Teratologias-juridicas-e-crise-da-democracia-brasileira/4/35826 e reproduzido em Koerner, Andrei. O STF no processo político brasileiro 1: da moralização da política ao golpe parlamentar (2012-2016). Cadernos Cedec n° 125, outubro de 2018, pp. 70-3.
[2] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Presidente do CEDEC.
[3] Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Referência imagética:
https://nossapolitica.net/2018/05/para-48-brasileiros-dilma-golpe/ (Acesso 03/08/2019)