Thatiane Moreira[1]
Mesmo antes das redes sociais se tornarem parte da rotina de muitos indivíduos, as falsificações de notícia seguiam ritmo intenso.[2], O que ocorreu nos últimos anos foi a ampliação do alcance e aprofundamento do processo de desinformação, atacando as verdades que poderiam ser objetivamente descritas.
É preciso ter em mente que desinformação, nesse caso, não se refere apenas à informação pela metade ou mal apurada, mas ao intuito deliberado de divulgá-la falseada. Desse modo, visa-se atingir interesses de indivíduos ou grupos, através de “narrativas jornalísticas”, propagadas como se pautadas em fatos. Ou seja, tais narrativas competem com notícias reais, em termos de estilo e linguagem, com a intenção de ganhar credibilidade (TANDOC JR. et al, 2018). As plataformas digitais, principalmente as mídias sociais, aparecem como ambiente propício para a divulgação e propagação de desinformação[3], dado que, por serem canais de compartilhamento permanentemente abertos entre os atores, permitem a difusão das informações de modo mais rápido, mais fiel e mais facilmente escalável (BOYD & ELLISON, 2007).
Dentro deste contexto, emerge a disputa discursiva nas redes sociais, entendida como uma disputa pela visibilidade (construída pelo alcance do discurso entre os vários sujeitos da rede, como no aparecimento nos trending topics, no caso do Twitter) necessária para a construção da legitimidade – obtida através da reprodução e consequente assujeitamento aos enunciados, como exemplificam os retweets.
Há dois elementos importantes que modulam o espalhamento da desinformação dentro das redes sociais (RECUERO et al, 2019). O primeiro diz respeito aos algoritmos de visibilidade dessas ferramentas (que formam as bolhas digitais), os quais selecionam o que será visto pelos atores com base em suas próprias ações e nas ações de sua rede social. O segundo se refere às escolhas dos atores, que decidem o que vão compartilhar, publicar ou tornar visível em suas redes sociais.
A estrutura da desinformação, apoiada nas bolhas digitais, opera de modo a legitimar as notícias fraudulentas como sendo “verdadeiras”, podendo criar narrativas pautadas em preconceitos e visões de mundo dos atores sociais inseridos em certa bolha (viés de confirmação). Elas são ecoadas através dos retweets (as denominadas câmeras de eco), que procuram construir um ambiente de pertencimento e engajamento (NUNES; LUD; PEDRON, 2018:65).
Como nas redes sociais a propagação da mensagem depende da ação da audiência, o desejo leva vantagem sobre o pensamento. Dessa forma, [4], o sentimento predomina sobre o argumento, característica que leva as notícias fraudulentas a repercutirem mais do que as verdadeiras, criando um ambiente propício a uma prática antiga, que vem ganhando força e escala em contextos eleitorais, tendo como um dos expoentes o Q-anon: as teorias da conspiração.
A sigla representa um usuário anônimo de fóruns de conversa na Internet que em 2017 começou a se apresentar como um informante de dentro do governo norte-americano. Segundo este usuário, existira uma espécie de seita satanista e pedófila – composta por bilionários, membros da mídia e de Hollywood, além de políticos e agentes de inteligência – que controlaria há décadas todas as esferas do Estado e da vida social. Ainda de acordo com a narrativa, Trump resolveu se candidatar à presidência para combater o satanismo e a pedofilia, motivo pelo qual sofre tantas críticas de artistas e de parte da mídia.
Como sempre foi um homem rico e influente, o atual presidente norte-americano teria ciência da existência desta seita e teria percebido que a única forma de exterminá-la seria alcançar uma posição que lhe dê mais poder do que ela teria. Os adeptos da teoria acreditam que haverá um dia em que o governante libertará toda a humanidade através da verdade, chamada de a tempestade (“the storm”), na qual os infratores serão presos ou executados.
A esperança da chegada deste dia da revelação torna a teoria Q-anon uma ferramenta eleitoral poderosa. Assim, em vez de ser uma simples teoria macabra, ela encontrou pontos reais com o poder, alcançando adeptos dentro da política dos EUA. E por mais que tenha suas raízes na cultura e no imaginário norte-americano, ela encontra ressonância no Brasil. Pensemos nas principais características desta teoria: (1) a existência de uma rede de pedofilia que precisaria ser eliminada a todo custo; (2) ela teria como expoentes pessoas que apresentam posições progressistas publicamente; (3) ideia que se associa a noção de que o presidente seria uma espécie de salvador ou libertador.
Encontramos no Brasil um alinhamento tanto às táticas quanto à finalidade dessa teoria. Essa aproximação consiste em propagar a ideia de que se está lutando contra um poder oculto, danoso para a sociedade. Por isso, haveria a necessidade de confiar no plano daquele que está no governo. No caso brasileiro, a ideia de “luta contra um poder obscuro” ganha forma em diversos temas, entre eles a pedofilia, debate que saiu do campo jurídico e se fortaleceu cada vez mais no âmbito político-partidário.
Neste contexto, a fim de analisar o alcance e o enquadramento dos discursos em torno da pedofilia no Twitter brasileiro, analisei 5.000 tweets extraídos[5] no dia 13 de setembro, data em que circulava a polêmica em torno da produção francesa Cuties que estreou no Netflix brasileiro em 10 de setembro. O filme foi acusado[6] por muitos de realizar apologia à pedofilia ao mostrar cenas sexualizadas de meninas menores de idade.
As redes dos tweets podem ser observadas no grafo abaixo:
As partes em tons mais avermelhados representam as comunidades (ou clusters[7]) formadas por mensagens contra a pedofilia, que ao mesmo tempo realizam uma politização (partidária) do tema e apoiam o atual chefe do Executivo brasileiro. Enquanto as comunidades que apresentam tons mais azulados são as que criticam a pedofilia ao mesmo tempo que se opõem à politização da mesma.
A rede em azul apresentou 1190 nós (usuários) e 1239 arestas (relações), com 39 comunidades, sendo menor que a rede em vermelho, que apresentou 1777 nós, 1913 arestas e 52 comunidades. O grau ponderado médio da rede em vermelho, o qual indica a diversidade das relações foi de 1,077. Já nas redes em azul, o grau ponderado médio foi de 1,047. Como esta média é calculada somando os pesos das ligações dos nós, isso mostra que os nós da rede em vermelho possuem laços mais fortes em comparação com a rede em azul.
É possível, assim, notar que a rede em vermelho apresenta mais relações entre as comunidades, possibilitando que as mensagens circulem e sejam compartilhadas com mais intensidade, de modo que a veracidade da interpretação ganhe legitimidade dentro deste grupo. É o processo de criação de enquadramentos, de interpretação sobre os fatos, que, no caso das redes sociais, se afirmam e se legitimam a partir do compartilhamento.
A partir da codificação das mensagens, ou seja, ao se relacionar ideias e dados, através do software Atlas.ti, dos quinze tweets com maior grau de entrada (Indegree), representados pela quantidade de conexões recebidas (menções ou retweets)[8], foi possível perceber a mesma partidarização da pedofilia presente no grafo, na qual de um lado estaria os opositores ao atual governo brasileiro, rotulados de “esquerda”, “comunista”, “mídia opressora”, que teriam como caraterísticas defender a pedofilia (5 menções[9]) e mentir para a população (2 menções); Do outro lado estariam os que defendem a vida e os valores tradicionais (3 menções), autoidentificados como aqueles que “combatem o sistema poderoso e corrupto” (6 menções). Dentre os tweets analisados, apenas em dois deles apareceu uma crítica ao fato da pedofilia ser colocada em uma arena de disputa partidária.
Fica claro que há, para essa rede, uma ligação muito estreita entre “defesa da pedofilia” e “opositores ao atual governo brasileiro”. Ou seja, defender uma posição política contrária aos que estão no poder aparece como sinônimo de “defender a pedofilia”, o que é comprovado ao se analisar o índice de coocorrência (Cooc), que mostra a frequência com que os códigos estão relacionados[10]. A relação entre o código “combater um sistema poderoso e corrupto” com o código “esquerda defende a pedofilia” apresentou um Cooc de 0,38 e a relação com “mídia tradicional mentirosa” apresentou um Cooc de 0,29, mostrando que a construção da identidade do grupo se faz na relação entre as características que defendem e o que deve ser combatido, Ou seja, ou se está de um lado (combate à pedofilia e apoio ao governo brasileiro vigente) ou do outro (opositores e defensores da pedofilia).
Há, portanto, uma tentativa por parte dos apoiadores do atual presidente brasileiro de rotular os opositores como pedófilos e de se auto intitularem como aqueles capazes de defender a sociedade brasileira desta ameaça. É preciso ter em mente os perigos por trás destas teorias, que não são simples devaneios de pessoas alucinadas. Não é porque uma ação se baseia em uma mentira que ela não tem efeitos.
Bibliografia
BOYD, D.M.; ELLISON, N.B. Social network sites: definition, history, and scholarship. Journal of Computer-Mediated Communication, v. 13, n. 1, p. 210-230, 2007. Disponível em: <http://jcmc.indiana.edu/vol13/issue1/boyd.ellison.html>. Acesso em: 3 dez 2019.
NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flavio Quinaud. Desconfiando da (im)parcialidade dos sujeitos processuais: um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. Salvador: Juspodium, 2018. P. 65.
TANDOC JR., E. WEI LIM, Z & LING, R. Defining “Fake News”. Digital Journalism, 6:2, 2018, p. 137-153, DOI: 10.1080/21670811.2017.1360143.
RECUERO, R.; Gruzd, A. Cascatas de “Fake News” Políticas: Um estudo de caso no Twitter. Galáxia (PUCSP), v. 41, p. 31-47, 2019.
[1] Possui bacharelado em Ciências Políticas, além de bacharelado e licenciatura em Filosofia, na Universidade Estadual de Campinas. Texto original publicado em https://reflexaoesociedade.blogspot.com/2020/09/midias-sociais-e-teorias-da-conspiracao.html
[2] Vale lembrar a campanha de inverdades movidas pelo governo de George W. Bush, em 2003, com jornais de reputação e de grande alcance corroborando a história. Para mais detalhes ver: Estudo diz que Bush fez 259 afirmações falsas sobre o Iraque: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL270622-5602,00ESTUDO+DIZ+QUE+BUSH+FEZ+AFIRMACOES+FALSAS+SOBRE+O+IRAQUE.html
[3] A noção de desinformação foi criada para melhor delimitar o entendimento sobre fake News., Ela foca, principalmente, na intencionalidade do agente produtor dessas falsas notícias. Assim, a desinformação é uma informação falsa propositalmente fabricada ou manipulada para enganar um grande público, para causar dano a algo ou alguém.
[4] Não significa que as redes sociais devam ser interpretadas como necessariamente uma tecnologia opressiva. É preciso notar que elas abriram novos canais para o diálogo e mobilizações, que desempenharam um importante papel perante Estados pouco abertos ao diálogo, como nos episódios da chamada Primavera Árabe, aprimorando, assim, o debate público e impondo agendas de mais transparência e accountability à máquina pública. O grande problema das redes está na concentração de propriedade e os moldes monopolistas com os quais elas se apossam do fluxo das comunicações digitais em todo o planeta.
[5] Extraídos através do Facepager e analisado através das ferramentas Gephi e Atlas.ti.
[6] Para mais detalhes ver: https://oglobo.globo.com/cultura/cuties-que-critica-publico-estao-dizendo-sobre-filme-da-netflix-acusado-de-sexualizar-criancas-24634728
[7] A clusterização é um processo frequentemente usado na análise exploratória dos Grafos. Refere-se ao processo de classificar os nós ou os links (edges ou ligações) de forma que aqueles com determinados atributos ou propriedades similares fiquem no mesmo “conglomerado”.
[8] Os nós com maior grau de entrada são considerados nós influentes na conversação na rede, de modo particular, porque seu discurso é reproduzido e legitimado.
[9] Quando me refiro a menções, significa quantas vezes este código apareceu dentro das quinze mensagens analisadas.
[10] É um número entre 0 e 1 e quanto maior ele for mais forte é a relação entre os dois códigos, segundo os padrões do Atlas.ti uma correlação com coeficiente acima de 0,2 é considerada forte.
Referência imagética: