Bernardo Mançano Fernandes[1]
Introdução
No dia 18 de maio o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) publicou uma nota a respeito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Movimento. A instalação da CPI é mais uma tentativa de criminalizar o MST que há quarenta anos está lutando pela reforma agrária (MST, 2023).
Qual o sentido de uma CPI para condenar uma luta necessária para o desenvolvimento do Brasil? É porque o MST é o principal movimento de luta pela terra que impulsiona a reforma agrária; é reconhecido internacionalmente como um dos principais movimentos camponeses do mundo; construiu uma teia e relações com diversas universidades e outras instituições, em escalas nacional e internacional, qualificou a educação, saúde, moradia, produção, industrialização e comercialização em seus territórios e muitos outros territórios da resistência camponesa. Enquanto a CPI tenta criminalizar o Movimento que tem contribuído com a diminuição das desigualdades no Brasil, ela esconde a intensa concentração fundiária produzida pela grilagem e pela destruição ambiental (DATALUTA, 2016).
Para tratar desse assunto apresento uma leitura dos debates e das disputas que fazemos nestes quase quarenta anos de existência do MST (FERNANDES, 2000). Está na natureza do MST a luta contra um sistema que há séculos tem destruído o campesinato no mundo: o capitalismo. Essa luta é a sua origem, ele nasceu da desterritorialização, ou em uma linguagem simples, da expropriação da terra, e para reverter o processo, utilizou-se de uma ação coletiva, como a luta pela terra, para pressionar a luta pela reforma agrária e promover a territorialização para continuar existindo, o que faz do MST um movimento socioterritorial (HALVORSEN, FERNANDES, TORRES, 2019). A natureza, a existência e a luta do MST são questões que atravessam essa CPI que não tolera a luta contra a concentração de terras, a luta contra a desigualdade, a luta pela produção familiar e ou cooperativada de alimentos saudáveis.
Debate Paradigmático
O debate paradigmático é um método que põe em diálogo leituras das interpretações dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário. Esses paradigmas possuem distintas visões de mundo sobre o desenvolvimento da agricultura (FERNANDES, 2013) e compreendem a reforma agrária de modos opostos. O paradigma da questão agrária compreende a reforma agrária como uma política atual e necessária (FERNANDES, RINCÓN, KRETSCHMER, 2018) e o paradigma do capitalismo agrário entende como uma política derrotada pelo agronegócio (AGÊNCIA SENADO, 2016).
A reforma agrária é uma política de desenvolvimento da agricultura frente ao modelo predatório do agronegócio que replica as estruturas do plantation em contínua exploração secular dos recursos naturais, mantido pela economia dependente baseada na concentração da terra, da riqueza e no poder conservador (FERNANDES, 2013; MITIDIERO, GOLDFARB, 2021; DE OLHO NOS RURALISTAS, 2023). Embora a reforma agrária seja uma política pública de competência do Estado, a sua realização nos últimos quarenta anos foi, predominantemente, resultado das ações coletivas dos movimentos de luta pela terra, principalmente o MST. No período 1988-2015, foram assentadas mais de 1 milhão e 100 mil famílias em uma área de 82 milhões de hectares, constituindo quase 10 mil territórios da reforma agrária, conhecidos como assentamentos rurais. Em nenhum outro país, as lutas pela terra proporcionaram resultados próximos a estes (DATALUTA, 2016).
A leitura de que “o tempo da reforma agrária já passou” toma como referência o agronegócio como único modelo possível para o desenvolvimento da agricultura. Essa interpretação entende ainda que a concentração da terra é parte consistente do modelo monocultor e agroexportador. Também acredita que o desenvolvimento agropecuário só é possível com a produção em grande escala, com o uso intensivo de tecnologias e insumos por meio de vultuosos investimentos. Não reconhece a importância dos assentamentos como territórios estratégicos para a produção de alimentos. Nessa leitura, o futuro da agricultura familiar é o seu desaparecimento na metamorfose para a agricultura capitalista. A CPI que está investigando o MST tem como referência o paradigma do capitalismo agrário, onde não há terra nem reforma agrária para o MST. Essa é a visão que está sendo utilizada pelos 26 deputados ruralistas desta CPI, que é composta por 40 deputados (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2023).
Disputas territoriais
A afirmação de que a concentração fundiária contribui para o desenvolvimento da agricultura é uma fábula do paradigma do capitalismo agrário. Na verdade, a concentração é parte do modelo predatório do agronegócio produtor de desigualdades. Esta estrutura fundiária tão concentrada é mantida há séculos e mesmo com a luta pela terra e uma reforma agrária que destinou 82 milhões de hectares a concentração foi intensificada. Os anos entre 1998-2014 formam o período da história do Brasil que teve o maior número de famílias assentadas. Mesmo com a luta pela terra e pela reforma agrária, os imóveis da agricultura familiar cresceram somente 11%, ou seja, passaram de 101 para 112 milhões de hectares. Neste mesmo tempo, a área total dos imóveis registrada no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) aumentou 78%, passou de 415 milhões de hectares em 1998 para 740 milhões de hectares em 2014. Os imóveis do agronegócio duplicaram de área, passaram de 314 milhões para 628 milhões de hectares, como demonstrado na tabela a seguir:
Fonte: Relatório DATALUTA BRASIL. REDE DATALUTA, 2016 (Org. Bernardo Mançano Fernandes)
Para o paradigma do capitalismo agrário, e para os deputados ruralistas, não faz nenhum sentido criar uma CPI para explicar como ocorreu a duplicação da área dos imóveis do agronegócio. Querem condenar o modelo de desenvolvimento sustentável, construído nas lutas pela terra e pela reforma agrária, cujos resultados representam em torno de 2/3 das unidades territoriais da agricultura familiar. A luta pela terra proporcionou ao Brasil a territorialidade da agricultura camponesa, pela territorialização dos assentamos rurais por todas as unidades federativas do País, contribuindo com a soberania alimentar, como demonstrado no mapa a seguir.
Disputas por modelos de desenvolvimento
O capitalismo definiu um modelo de desenvolvimento da agropecuária baseado no plantation, ou seja, na concentração fundiária para a produção em grande escala para exportação. A modernização desse modelo passou a utilizar diferentes tipos de tecnologias, desde máquinas sofisticadas até o uso de pesticidas na produção de alimentos ultraprocessados. Em meados do século passado esse modelo ganhou um novo nome, passando a ser chamado de agronegócio (DAVIS, GOLDBERG, 1957). A construção desse modelo aconteceu com a captura do Estado pelos ruralistas e pelas corporações nacionais e multinacionais. Com essa estratégia tornou-se o modelo hegemônico no mundo na segunda metade do século XX.
Formado por um conjunto de sistemas compreendido pela agricultura, pecuária, indústria, comércio, tecnologia, finanças e um forte sistema ideológico, passou a propagandear que o agronegócio é tudo, ou seja, o único modelo no mundo. Essa ideologia conquistou as mentes dos governos, das agências multilaterais, universidades e outras instituições. Atingiram um nível de poder que não importa se o governo é de direita ou de esquerda, o ministro da agricultura é definido pelo agronegócio. Primeiro, o agronegócio subordinou a agricultura camponesa por meio de uma relação de controle das relações de produção denominado de integração, todavia essa relação só funciona para poucas commodities.
Desde a década de 1990, com a criação da Via Campesina, uma articulação de movimentos camponeses organizados em todo o mundo, os questionamentos sobre essas relações de subordinação aumentaram. O MST foi um dos movimentos camponeses que ampliou sua estrutura organizativa, dedicando-se a pensar a produção agroecológica e a criação de novos mercados. Os mercados institucionais e os populares abriram novos espaços para a produção dos assentamentos de reforma agrária. A produção agroecológica também abria novos mercados ao mesmo tempo que confrontava o uso intensivo de venenos pelo agronegócio (ROSSET; ALTIERI, 2022). Outra política proposta pela Via Campesina foi a Soberania Alimentar, uma perspectiva indissociável da agroecologia que se utiliza da diversidade produtiva de acordo com as regiões.
Essas são algumas iniciativas que proporcionaram uma rede de produção e de economia solidária em todo o Brasil. Essas mudanças ampliam as necessidades por mais terras, o que também atualiza o sentido da reforma agrária e da luta pela terra. Portanto, a CPI está tentando criminalizar um modelo de desenvolvimento. Os ruralistas não aceitam a autonomia do campesinato. Por isso, o MST incomoda, porque traz um perspectiva promissora e denuncia um modelo predador.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
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Davis, J. H.; Goldberg, R. A. (1957) A concept of agribusiness. Massachusetts: Harvard University Press
De Olho nos Ruralistas. As origens agrárias do terror: do golpe de 1964 ao 8 de janeiro de 2023. Brasília: De Olho nos Ruralistas, 2023.
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Halvorsen, S.; Fernandes, B. M.; Torres, F. V.; (2019) Mobilizing Territory: Socioterritorial Movements in Comparative Perspective, Annals of the American Association of Geographers, 109:5, 1454-1470, DOI: 10.1080/24694452.2018.1549973
Mitidiero Junior, Marco Antonio. Goldfarb, Yamila. O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2021.
MST. Instalação de CPI é mais um capítulo da ofensiva contra o MST. Acessado em 18 de maio de 2023. https://mst.org.br/2023/05/18/nota-instalacao-de-cpi-e-mais-um-capitulo-da-ofensiva-contra-o-mst/
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Rosset, Peter M. Altieri Miguel A. Agroecologia: Ciência e política. São Paulo: Editora Unesp; Editora Expressão Popular; Editora da UFRGS, 2022.
[1] Geógrafo, professor de Geografia dos cursos de graduação e Pós – Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Presidente Prudente e do Programa de Pós – Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe da UNESP, campus de São Paulo; Pesquisador 1B do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Pós-doutorado pela Universidade do Sul da Flórida; Professor visitante da Universidade Nacional de Córdoba (2008/2014); Professor visitante da Universidade de Stanford (2016); Professor visitante da Universidade de Cardiff (2018); Coordenador do Grupo de trabalho Desenvolvimento Rural na América Latina, do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais – CLACSO – 2005/2010 e membro do Comitê Diretivo (2016/2022). Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Gestão 2002/2004. É coordenador da Cátedra UNESCO de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial; membro do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – NERA. Coordenador da REDE DATALUTA. Autor de centenas de artigos sobre teorias da questão agrária, dos territórios e movimentos socioterritoriais; Autor de A formação do MST pela Editora Vozes, 2000. Autor de Brava Gente com João Pedro Stedile pela editora Expressão Popular, 2015. Organizador de Campesinato e Agronegócio na América Latina. CLACSO – Editora Expressão Popular, 2008. A atualidade da reforma agrária na América Latina e Caribe, publicado por CLACSO, em 2018. Peasant Movements in Latin America In: Oxford Research Encyclopedia of Politics.21 ed.: Oxford University Press, 2020. Territories of hope: A human geography of agrarian politics in Brazil. E-Nature And Space, 2022.
Para ver o CV completo, acesse o sítio: http://lattes.cnpq.br/2836764800084585 ou http://www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/92581/bernardo-mancano-fernandes/. E-mail: mancano.fernandes@unesp.br
Fonte Imagética: Brasil de Fato. “Sem terra não há democracia”: CPT denuncia violência no campo e promove apoio aos movimentos. 11 jul. 2023. Fotografia de Katia Marko. Disponível em: <https://www.brasildefators.com.br/2023/07/11/sem-a-terra-nao-ha-democracia-cpt-denuncia-violencia-no-campo-e-promove-apoio-aos-movimentos>. Acesso em: 20 jul. 2023.