Equipe do Boletim Lua Nova
Retrospectivas são sempre textos curiosos. Eles visam retomar os principais eventos de um determinado período, e são mais frequentes conforme se aproxima do fim do ano. Não seria diferente com o Boletim Lua Nova, em especial quando a equipe se encaminha para o seu (merecido) recesso. Assim como em 2022, tivemos um ano repleto de eventos e textos sobre os mesmos. Antes de fazer um apanhado de algumas publicações (não sem algum risco, pois retomar os 106 publicados este ano seria uma tarefa para além desses poucos parágrafos), gostaríamos de retomar a importância da divulgação científica e do trabalho das/os pós-graduandas/os que compõem nossa equipe.
Quando o Boletim Lua Nova surge, em 2018, o desafio é continuar a pensar a democracia em um contexto em que ela estava sendo atacada e antes de um governo que levaria ao desmonte de diversas políticas públicas conquistadas anteriormente. Neste sentido, surge também em um contexto de ataques à educação e à ciência, e de redução de recursos – e o Boletim só é viabilizado, neste momento, pelo trabalho voluntário de pós-graduandas/os e recém-doutoras/es. Quando surgimos naquele ano tínhamos o formato de um pdf anexo à Revista Lua Nova e a mesma regularidade da revista, isto é, um exemplar a cada três meses. Nosso formato foi desde então renovado, e hoje contamos com ao menos duas publicações em blog por semana.
O que não mudou foi o trabalho por trás do Boletim, que continua sendo realizado voluntariamente por pós-graduandas/os e recém-doutoras/es, com o cuidado que aprendemos com a primeira equipe, a responsável pelo surgimento do Boletim. Diversas são as razões para darmos continuidade a este trabalho. Primeiro, a ciência e a educação continuam sob ataque: ainda sentimos os efeitos do último governo federal e há ainda grupos na sociedade brasileira que não conhecem, ou não compreendem, a importância e o impacto das ciências humanas e sociais. Entendemos nosso papel na divulgação do que se produz nas Humanidades e nas Ciências Sociais, e temos no Boletim um espaço plural, em que diversos temas são abordados por pessoas em diferentes momentos da vivência acadêmica. Nossos textos variam desde contribuições de alunas/os na graduação e pós-graduação a textos de pessoas que já estão mais consolidadas na carreira, e vemos riqueza na possibilidade de trazer pesquisas em andamento ao lado das concluídas.
O Boletim vem se concretizando como um espaço para a divulgação dessas pesquisas e para repensar os temas que nos são caros. Damos continuidade ao esforço da criação do Boletim, que é a atividade de (re)pensar a democracia e as diferentes configurações que nos são apresentadas por nosso tempo. Afinal, desde o editorial de 1984 da Lua Nova, (Re)pensar a democracia é um exercício crítico que necessita ser constante e, como demonstra o nosso catálogo neste ano, integrar diferentes perspectivas do mesmo processo.
Nossos textos deste ano cobriram desde os desafios da pesquisa científica ao tema da redação do Enem 2023 (o trabalho doméstico invisível), textos de conjuntura, relatos de evento e séries especiais sobre temas de destaque neste ano. Iniciemos a retomada de alguns deles.
Buscamos trazer aproximações e comparações do que passamos com o fascismo e a racionalidade neoliberal. Como pensar a democracia brasileira depois que o artigo 142 da Constituição Federal foi utilizado para sugerir a possibilidade de um golpe das forças armadas? Também observamos, com perplexidade, o 8 de janeiro, uma repetição do ocorrido em 6 de janeiro de 2021 (talvez como farsa?) de um grupo de pessoas que não aceitavam o resultado de eleições legítimas. As experiências recentes do Brasil e do mundo com retóricas de extrema direita chamam atenção para análises sobre esses fenômenos, sejam elas análises de Carl Schmitt, Edmund Burke, Franz Neumann, Woodrow Wilson e Carlos Lacerda, ou papel da Procuradoria Geral da República durante o governo de Jair Bolsonaro, e os efeitos desse governo no presidencialismo de coalizão. A intersecção destes temas com gênero também não passou despercebida.
Além deste tema, a teoria teve um forte papel nas publicações do Boletim de 2023. As publicações questionaram como se pensar uma teoria sobre direitos humanos; a figura do tirano em Nicolau Maquiavel; o jazz e Theodor Adorno; propriedade e autoridade em John Locke. Revisitou-se também o modernismo pela arte indigena, e nossas resenhas abarcaram as mulheres que correm com lobos e as vivências afetivas de mulheres negras.
2023 também foi um ano de marcos temporais importantes: completaram-se 5 anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes; 50 anos do golpe militar no Chile, marcando o bombardeio do La Moneda e como relação entre o presidente Allende e o direito foi colocada em xeque; 50 anos de morte de Josue de Castro, um personagem politico brasileiro multifacetado, destacadamente ativista contra a fome; 50 anos da morte de Hans Kelsen, o jurista da Teoria Pura do Direito e um personagem de importância nos debates teoricos entre juristas; um ano da morte do ídolo Pele e 10 anos da morte de Hugo Chávez.
Foi também o ano em que se completaram 10 anos das manifestações de junho de 2013 em todo o país, iniciadas por um aumento nas tarifas de transporte público, mas que tomou proporções que ainda são temas de pesquisas nas ciências sociais. Ainda nos questionamos o que elas nos dizem. As jornadas ou manifestações de 2013, como ficaram conhecidas, podem ser vistas de diferentes ângulos. Na série especial do Boletim, foram notadas a importância do coletivo que tomou as ruas, mas também as ambivalências do período e o caráter antipolítico que alguns leem nessas manifestações, em razão dos eventos que se seguiram – a exemplo da oposição ao segundo mandato de Dilma Rousseff e que levou ao golpe de 2016. Porém, vale ressaltar, que a despeito do que se entende de Junho 2013, tratou-se de uma experiência política autêntica e que influenciou os caminhos políticos posteriores.
Alguns debates são heranças do governo anterior, como foi o gerado pelo chamado Novo Ensino Médio, e se este deveria ser reformado ou revogado. Qual o papel que a educação tem no processo de formação democrática de um país? O país de Paulo Freire, um dos nomes mais reconhecidos na educação no mundo, é também aquele em que ainda se debate um projeto de longo prazo para a educação, o que contempla, por óbvio, o ensino médio. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento Sem Terra também foi um dos destaques, visto que colocou uma vez mais a questão agrária na pauta – ainda que a CPI, em si, teve poucos resultados.
Um tema recorrente foi a violência contra a população negra no Brasil. A letalidade dessa violência é um dado que há muito tem sido denunciado, mas nota-se a existência de uma estrutura estatal histórica e racista que mantém a violação de direitos deste grupo social. Igualmente, as representações midiáticas e caricaturais da juventude negra, a exemplo do mofi na Paraíba, alimentam e se alimentam do racismo. É necessário repensar (e por vezes retomar) as narrativas que ocupam o espaço público sobre o tema – isso neste ano em que se completam, também, 10 anos dos rolezinhos em shoppings do país. Além disso, o racismo também foi assunto na entrevista realizada com Erico de Andrade, um de nossos destaques deste ano.
Outro assunto que se destaca entre as publicações do ano é aquele dos direitos e das vivências de mulheres. Nesta categoria tivemos a republicação da entrevista de Silvia Federici, um texto sobre o perfil das trabalhadoras domésticas resgatadas de trabalho escravo no país, outro a respeito do papel das mulheres na gestão da água nas periferias metropolitanas, além das análises sociológicas pioneiras sobre as mulheres no Brasil e, por fim, a recente aprovação da lei contra a violência sexual caracterizada pela prática de “stealthing”.
Além dos eventos nacionais, vale destacar que ainda estamos vivenciando a Guerra entre Rússia e Ucrânia e uma crise em Gaza. Enquanto a guerra na Ucrânia se estende desde fevereiro de 2022, desde outubro deste ano, quando o grupo Hamas atacou o Estado de Israel, este tem bombardeado e atacado Gaza e a faixa de territorio palestino, aprofundando as violacoes ja sofridas pela população daquela região.
Por fim, dentre os eventos deste ano, cobrimos parte das mesas do Fórum Permanente de Discussão organizados pelo projeto Democracia, Direitos, Desenvolvimento, pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), a Universidade Federal da Paraíba e o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, com apoio do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em 2023, relatamos as três primeiras mesas: “Desafios da democracia no capitalismo periférico”, “Significados do desenvolvimento: ontem e hoje” e “A difícil República”. Para 2024, traremos os relatos das demais mesas realizadas este ano.
O ano de 2023 fica marcado, portanto, por uma grande riqueza de textos e, infelizmente, não pudemos abarcar todas as publicações realizadas em nosso blog nesta breve retrospectiva. Entretanto, esperamos que nesses parágrafos tenha sido possível retomar alguns dos principais eventos que marcaram este ano e temas que são recorrentes quando (re)imaginamos nosso espaço político. Ao final de 2022 (e, na realidade, desde a criação do Boletim Lua Nova), lançamos o convite para repensar a democracia, lembrando do que motivou a criação da revista Lua Nova e de seu primeiro editorial, em 1984. O próximo ano já se anuncia com grandes desafios, tanto nacionais quanto internacionais; então, uma vez mais, trazemos o chamado: juntas(os) vamos continuar a pensar a democracia.