Leonardo Octavio Belinelli de Brito[1]
Uma das formas de pensar os eventos contemporâneos é por meio de paralelismos com eventos anteriores, sobre os quais foram acumulados estoques teóricos-analíticos. Talvez se possa dizer que o exercício é inevitável e caiba acrescentar que não há nada de mal em fazê-lo. Bem ao contrário, ele nos permite evitar a paralisia diante da suposta novidade de todo acontecimento recente. Por outro lado, se mal feito, faz com que corramos o risco de identificar, de forma abstrata, os fenômenos recentes com aqueles passados, como se não houvesse nada de novo. Na frase certeira de Gabriel Cohn: “Analogias históricas são instrutivas, desde que não levadas ao pé da letra”.[2]
Dito isso, como destacaram alguns analistas da mídia nacional e estrangeira[3], chamam a atenção os paralelismos possíveis entre Jair Bolsonaro (PSL) e o ex-presidente Jânio Quadros (1961). Guardadas as devidas proporções, próprias às aproximações entre contextos históricos radicalmente distintos, é notável como Bolsonaro e sua equipe, assim como Jânio em sua época, demonstraram habilidade no uso das mais recentes tecnologias em campanha, elemento necessário à sua estratégia singular de inserção política.[4] Em alguma medida, essa abordagem “direta” sobre os eleitores parece ter relação com a falta de relação orgânica de Bolsonaro com o seu partido, característica que também o assemelha a Jânio Quadros.[5] Se o ex-capitão do Exército foi candidato pelo até então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL) e só contou com o igualmente irrelevante Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) em sua coligação eleitoral, Quadros foi candidato à presidência da República pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN), com o apoio do Partido Libertador (PL), do Partido Democrata Cristão (PDC) e do Partido Republicano (PR), todos pequenos. A União Democrática Nacional (UDN) só veio a apoiá-lo mais tarde e nunca se identificou plenamente com ele – aliás, a relação Jânio-UDN tem um quê de paralelismo com a relação Bolsonaro-DEM.
A aproximação dá o que pensar. No caso da eleição de Quadros, o que se revelava era a dificuldade daquilo que André Singer (2018) chamou de “partido de classe média” em ganhar a eleição presidencial num contexto marcado por um alinhamento eleitoral em processo de consolidação. Daí a sua adesão a um candidato que parecia ter potencialidade para superar as barreiras próprias ao estrato de classe que servia de base à agremiação. Talvez algo análogo esteja ocorrendo. Se for esse o caso, podemos pensar, como outros observadores, que Bolsonaro é, paradoxalmente, um sinal da limitação da direita brasileira em vencer as eleições presidenciais em um contexto eleitoralmente alinhado.
A observação é contra intuitiva e talvez seja desmentida pela história. Mas vale salientar que ela não é de todo implausível. Em favor dela, lembremos que, embora se diga muito a respeito da “onda conservadora” – em certa medida, algo que parece inegável –, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tinha, em agosto de 2018, 39% das intenções de voto.[6] Ou seja, não seria nada impossível imaginar que o padrão eleitoral das últimas eleições, marcadas pela vitória do lulismo, poderia se repetir. A novidade é que Bolsonaro parece ter sido especialmente capaz de absorver uma parcela importante do eleitorado “órfão” de Lula, o que reforça o argumento de que foi capaz de transcender os limites relativos ao realinhamento eleitoral vigente.
Se o raciocínio estiver correto, apresentam-se diversas questões para a “opção Bolsonaro”, entre as quais: será ela capaz de se tornar a opção predominante da classe média, tomando, assim, o lugar que coube ao PSDB desde 2006? Ou ainda: o bolsonarismo será capaz de desalinhar as correspondências eleitorais estabelecidas desde então? Conhecemos uma das formas pelas quais ocorre o desalinhamento: o uso da força bruta dos ocupantes do Estado, como ocorreu quando da outorga do Ato Institucional nº2 de outubro de 1965, responsável por desativar o sistema eleitoral formado entre 1945-1964. Para que ocorra outra forma de desalinhamento, o governo Bolsonaro terá que ser capaz de, ao mesmo tempo, satisfazer demandas da elite, da classe média e dos setores populares. Para dizer o mínimo, trata-se de uma tarefa praticamente impossível, como sugere qualquer análise de conflito distributivo. Mesmo um exemplo muito bem-sucedido de negação do confronto aberto, como o próprio lulismo, não conseguiu fazê-lo. Será preciso fazer opções e aqui a transcendência classista de Bolsonaro revelará sua falsidade. O resultado disso não está claro, nem poderia, porque depende dos conflitos sociais e políticos dos próximos anos. Mas cabe notar que, para tentar atingir a quadratura do círculo, ou mascarar suas opções, Bolsonaro poderá contar, por exemplo, com a mobilização da agenda conservadora no âmbito dos costumes e da cultura.
No plano político pós-eleitoral, continuam existindo elementos que tornam possível o paralelo entre Quadros e Bolsonaro. Embora capazes de projetar personas públicas moralistas. supostamente incorruptíveis e de modos simples, o que lhes granjeou milhões de votos, ambos se identificam com a ausência de projetos políticos e econômicos robustos. Se todas essas características facilitam a identificação entre o candidato e os eleitores, tornando possível a transcendência aos conflitos de classe, apenas com elas não se governa o país. O desnível entre o discurso e a prática se revela de modo chocante. No caso de Quadros, basta lembrar sua dedicação pessoal a algumas pautas hoje folclóricas, como a proibição do biquíni e das rinhas de galo, em um contexto de agravamento da crise econômica. Já no caso de Bolsonaro, avultam também preocupações com questões de ordem “moral”, como revelam as atuações dos ministros Ricardo Vélez Rodriguez e Damares Alves e o não menos folclórico tuíte de um vídeo obsceno[7]. Também carente de qualquer projeto próprio de país, Bolsonaro parece terceirizar seu governo, como manifesta a sua referência ao hoje ministro da Economia, Paulo Guedes, como “Posto Ipiranga”. Essa falta de projeto próprio, um defeito fatal para qualquer político de primeira grandeza, pode ser, um tanto paradoxalmente, uma virtude eleitoral, pois permite esse trânsito ideológico comum a esse tipo de candidato. Por outro lado, convém destacar a existência de um desnível qualitativo entre o moralismo de Quadros e os seus efeitos em comparação ao discurso potencialmente fascista de Bolsonaro e seus asseclas, conforme sugeriu Bernardo Ricupero em coluna neste mesmo blog.[8]
Com efeito, os personagens do tipo Quadros e Bolsonaro tornam especialmente aguda a diferença entre a lógica eleitoral e a lógica do exercício do poder. Se são especialmente hábeis na primeira, são marcadamente incompetentes na segunda. A tensão própria dessa contradição se revela, por exemplo, no momento em que esses políticos, quando candidatos, propagam a ideia de que governar é tarefa simples. Os motivos para a popularidade dessa tese, flagrantemente falsa, são variados e podem passar, por exemplo, pela frustração disseminada com a burocracia estatal, vista como corrupta e/ou ineficiente.
Como exemplo dela, é suficiente lembrar dos bilhetinhos de Quadros, cujo intuito básico era saltar a burocracia, elemento essencial da complexa mediação entre Governo e Estado. Ora, os áudios do aplicativo Whatsapp parecem constituir o equivalente na lógica de governo de Bolsonaro, à qual se associa, com grande gravidade, a indistinção entre a função de presidente da República e o pai de família, sempre presente na cúpula palaciana. Não haveria aí uma sugestão, mesmo inconsciente, de que governar o país é como dirigir uma família? Caso a sugestão faça sentido, estaremos em águas conhecidas, a do patriarcalismo e do patrimonialismo, assunto privilegiado de alguns dos clássicos da formação social brasileira.
Nesse plano, a aproximação também rende outras conjecturas. O governo Jânio Quadros, por sua própria decisão, durou apenas 7 meses. É possível que aconteça o mesmo a Bolsonaro? É, mas não é provável. A cautela nos obriga a reconhecer que é impossível sabermos o desfecho da história. No entanto, a dinâmica política nos permite imaginar que se anuncia um governo em crise permanente e cada vez mais incapaz de exercer, em nome próprio, seu mandato. É que, ao contrário do que costumamos pensar, ordem e crise só se contradizem plenamente no dicionário.[9] Uma das soluções possíveis para esse cenário é a autonomização de esferas do governo em relação aos próprios ocupantes do poder. O paralelo aqui pode ser a formação daquilo que Fernando Henrique Cardoso (1975) chamou de “anéis burocráticos”, no plano das relações econômicas da elite com o Estado, e “Sistema”, no plano da organização de um novo sistema repressivo ao qual poderia se conjugar os dedicados à “guerra cultural” planejada por alguns dos ideólogos do governo.
Cabe, então, recordar uma das linhas analíticas que vem surgindo no debate sobre Bolsonaro: a diferença entre o mandatário e seu entourage. Eleitoralmente útil e tecnicamente incapaz, Bolsonaro talvez seja, enquanto figura singular, a menos interessante de seu governo. O sentido dele, do governo, pode ser mais facilmente encontrável na análise dos diversos núcleos que o compõem. Bolsonaro chegou ao poder com uma equipe em que se misturam veteranos da chefia Exército, um juiz de inegável apelo popular como Ministro da Justiça, um economista ultraliberal com superpoderes, mas nem sempre bem visto por seus pares do mercado, e um conjunto de figuras intelectual e politicamente inexpressivas, as quais conformam a “ala psiquiátrica” do governo, conforme designação de André Singer em coluna de 2 de março de 2019 na Folha de São Paulo.
Pelo que vimos, parecem que têm razão as análises que destacam os pesos dos núcleos militar, financeiro e jurídico do governo. Diversos entre si, tais núcleos parecem ter em comum um aspecto decisivo, como notaram Wanderley Guilherme dos Santos (2017) e Gabriel Cohn (2018): a missão de sabotar os elementos essenciais da democracia no país, como os direitos previdenciários, trabalhistas e – por que não dizê-lo? – civis, conforme expresso no Pacote Anticrime apresentado pelo ministro Sérgio Moro. Invertendo a ironia de Marx no Dezoito de brumário, se Jânio Quadros foi uma farsa, Bolsonaro poderá, se não contido pelas forças democráticas, ser uma tragédia.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Autor de Os dilemas do patrimonialismo brasileiro – as interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman (Alameda, 2018). Membro do corpo editorial do blog Boletim Lua Nova.
[2] Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-nova-cara-do-presidencialismo/. Acesso em: 08 mar. 2019.
[3] Ancelmo Góis, em post no seu blog datado de 9 de outubro de 2018, já sinalizava, ainda no período eleitoral, o paralelismo entre ambos. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/seria-bolsonaro-o-novo-janio-quadros.html .Acesso em 10 de mar 2019. A revista Veja, conhecida por seu marcado posicionamento à direita, fez o mesmo movimento na capa da edição 2617, de janeiro de 2019. O jornal norte-americano The New York Times, em editorial de 7 de março de 2019, depois do episódio da postagem de um vídeo obsceno feita por Bolsonaro no Twitter, também esboçou a comparação. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/03/07/opinion/bolsonaro-tweet-carnival.html?smid=fb-nytopinion&smtyp=cur&fbclid=IwAR0MN9rmQb2poZic3Aunk5KBJPPohzz8b2Qs2zCk0xnwBF7bGx33Ot64egM&sfns=mo .Acesso em: 10 de mar. 2019.
[4] Embora deva-se destacar as fortes suspeitas de irregularidades nesse uso. Sobre o assunto, ver a coluna escrita por Alexandre Arns Gonzales, Álvaro Okura de Almeida, Rafael Sanches e Thatiane Oliveira Moreira aqui no blog Boletim Lua Nova. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/02/27/bolsonaro-e-as-redes-sociais-nas-eleicoes-e-depois/. Acesso em: 07 fev. 2019.
[5] O argumento vale também para o caso de Donald Trump, com o qual Bolsonaro costuma ser comparado.
[6] Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/preso-lula-tem-39-de-intencoes-de-voto-sem-lula-bolsonaro-tem-22/. Acesso em: 07 fev. 2019.
[7] Para uma análise preliminar sobre o caso, ver a coluna de Sérgio Costa aqui no blog Boletim Lua Nova. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/03/08/o-presidente-e-o-video-obsceno-tres-hipoteses/ . Acesso em: 08 mar. 2019
[8] “O bolsonarismo é um fascismo?”. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/02/19/o-bolsonarismo-e-um-fascismo/. Acesso em: 07 mar. 2019.
[9] A hipótese a respeito de um governo que governa por meio de uma crise permanente foi lançada por Vladimir Safatle no evento “Construindo a resistência”, relatado aqui no blog. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/02/18/construindo-a-resistencia/. Acesso em: 07 fev. 2019.
Referências bibliográficas
CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
COHN, Gabriel. A nova cara do presidencialismo. Le Monde Diplomatique, 6 de novembro de 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-nova-cara-do-presidencialismo/. Acesso em: 07 fev. 2019.
SANTOS, Wanderley Guilherme. A democracia impedida: o Brasil no século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2017.
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Referência imagética:
Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/seria-bolsonaro-o-novo-janio-quadros.html (autoria: André Mello). Acesso: 10 mar. 2019